Suzana Varjão

As crias (um curioso caso de 'síndrome do ninho vazio')


Foto: Suzana Varjão

-- Toc, toc, toc...

As batidas na porta inundam seu coração de ternura. Desde que o último dos três filhos se casou, tomou para si a tarefa de criá-las, ainda que sem qualquer expectativa de... por assim dizer... intercâmbio de afetividades — em sua percepção, algo simplesmente impossível de acontecer.

A estratégia tinha por objetivo preencher o buraco que o fim do projeto mãe em tempo integral abrira em seu peito e em seu rito doméstico, reduzido a um cotidiano de quartos arrumados, sem toalhas úmidas jogadas nas cadeiras, cuecas ou sutiãs espalhados pelo chão — os dias destituídos de ruídos, as noites livres de preocupações e plenas de desvontades.

Nos primeiros meses de ninho vazio, chegara a adoecer. Despertava durante as madrugadas sentindo palpitações, tremores, calafrios, dores no corpo — coisas da idade e suas desventuras, imaginava. Mas aos sintomas associados a uma possível menopausa somaram-se muitos outros, como perda de apetite, humor flutuante, ansiedade, prostração.

Resistiu, mas aceitou ajuda — menos por convicção, mais para fazer cessar o nhem-nhem-nhem à sua volta: "Você tá é ficando deprimida..."; "a ausência dos meninos tá lhe adoecendo..."; "tem que dar novo sentido a sua vida..."; "precisa estabelecer rotinas diferentes..." (e outros — incontáveis — diagnósticos e receitas de cura da infelicidade).

Resignificar a existência era muita coisa. Reinventar o dia a dia caseiro, um pouco mais fácil. E foi o que procurou fazer, pensando mais no útil que no agradável, mas, no final das contas, sendo mais agradável do que útil, porque — admite — as novas crias tinham abrandado a falta que sentia das crianças e seu rol inesgotável de carências e cuidados.

Claro que guardadas as devidas proporções e especificidades, porque não há nada que possa concorrer com sensações e sentimentos relacionados a um filho; nada que se compare, por exemplo, à alegria que experimentava ao ouvir o click da chave abrindo a porta de casa depois de uma noite de ausência e vigília.

Mas esse toque-toque na porta tem o poder de resgatar e produzir emoções.

É um aviso de presença, um chamado, um pedido de atenção, um sinal, portanto, de benquerença, como tantos emitidos pelos meninos, ainda que inconscientemente, a partir de demandas ordinárias de subsistência — o que ocorria mesmo nos anos de afirmação de identidade e negação dos que até então eram seus amores, seus nortes, seus heróis.

Não lembra exatamente quando o distanciamento começara; em que momento os beijos melados haviam sido trocados pelo roçar apressado de bochechas; quando o orgulho publicamente exposto tinha cedido lugar a um indisfarçável constrangimento; a fascinação, substituída pela indiferença.

Indiferença, aliás, que sentira no início por Anita, Elsa, Paty...

Paty recebeu o apelido de sua primogênita não por ter sido a primeira a chegar à casa, mas para marcar a reviravolta nas relações com as pequeninas, a partir, infelizmente, de um acontecimento trágico — a morte da parceirinha, encontrada boiando na piscina, após o que a pobre parou de comer e passou a andar pelos cantos, crista baixa, asas caídas...

-- Minha mãe, isso é tristeza!!!

A conclusão da filha mais velha era inusitada, mas cravou nela um irreversível sentimento de compaixão, que foi evoluindo para um cuidar menos utilitário — o desinteresse se diluindo, o espaço reservado à granja se transformando, pouco a pouco, em reduto de pets com nomes escolhidos de acordo com cada personalidade.

Continua achando estranho que um ser vivo com o cérebro do tamanho de uma noz possa reagir à perda da companheira, portanto, sofrer, sentir tristeza, melancolia, saudade, solidão... Mas tem que reconhecer que Paty voltou a sassaricar pelo quintal, tão logo ganhou novas amiguinhas.

Passara a observar, também, certos trejeitos semelhantes ao comportamento humano, como quando, ao ouvir o som das bicadas, abria a porta dos fundos, e elas entravam em casa e corriam para o quarto dos meninos, empoleirando-se, alvoroçadas, nas camas vazias, todo final de tarde....

(porque hoje é domingo...)