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E as duas começaram a perseguir os passos destes pequenos seres vivos pelo quintal da casa da avó.
Viram rastros deles nas árvores, nas folhas de guaco, de alecrim, de manjericão; formigas minúsculas, outras: um pouco maiores.
Chegaram a uma conclusão bastante simples: as pequenas moravam junto a árvores pequenas, como protetoras; as grandes: nas palmeiras, nos coqueiros, nas árvores maiores, e podiam assim fazer barreiras, protegê-las em dias de chuva forte. E todas trabalhavam em conjunto quando uma delas morria. Fosse grande ou fosse pequena. E a formiga defunta era carregada a um cemitério comum a todas elas que ficava escondido debaixo da grama. Num lugar sem a necessidade de jazigos, cruzes e ou velórios.
Os machucados e doenças eram curados pelas formigas mais velhas que tinham aprendido medicina com suas avós.
Uma interrupcão de Dodó: "Papai, tá na hora de dar comida pra tartaruga. Ela tá como fome."
E a brincadeira continua. E, depois de tentar traduzir o intraduzível aqui, ou seja, as experiências de minhas filhas compartilhadas e vivenciadas comigo, deparo-me com um dilema que persegue a nós adultos. Por quê odiamos tanto? Tá na cara que não nascemos assim. Nascemos sem querer fazer mal a uma formiga. Não é?
Está certo que nascemos chorando: um vaticínio do cenário de adultos dementes - que arquitetam a destruição. Mas qual o momento, a linha divisória em que a inocência é destruída, é cortada por uma lâmina afiada de samurai e o mundo se torna um trem fantasma, um ambiente inóspito e passamos a lutar pela sobrevivência e principalmente pela aparência?
Como no original dos quadrinhos, em que o cientista Dr. Bruce Banner é atingido por raios gama, e dará vida ao selvagem alter ego Hulk, enquanto salvava um adolescente durante o teste militar de uma bomba. Mas o Hulk do Dr. Bruce luta contra injustiças, contra a maldade humana - ele tem coração. E a gente torce por ele. E nós, lutamos contra o que? Parece-me que contra nós mesmos.
Nós acabamos com a nossa raça e a de todos os outros seres viventes. Lutamos por tudo que é mesquinho. Sempre querendo parecer melhores do que realmente somos. Por que nos pintamos tão nobres? Por que escondemos a sete chaves o lado oculto da lua que todos nós carregamos no peito (e que não é o altruísta Hulk) - e aparece em nossos gestos, olhares, atitudes, mesmo quando tentamos dissimular como atores dignos do Oscar. Por que nos tornamos tão egoístas? Por que, no departamento "público" em que trabalhei, havia dois tipos de café: santo grão pro "patrão" (com super-salário que não aparecia no portal da transparência) e amigos do "patrão", e pilão pro peão - sendo que ambos têm os mesmos direitos e o dinheiro vem do contribuinte? Por quê?
Os machucados nos joelhos de minhas filhas eu posso cuidar, mas os da alma, vivendo nesse mundo, nada, ou muito pouco poderei fazer. Se existe uma coisa realmente intransferível: é a experiência. Só perde para a morte: que é insubornável. Nem os irmãos Batista podem corromper.
Ao ligar a TV num canal de notícias, ao abrir um jornal na internet, fico com uma completa sensação de impotência - olhando o que estamos deixando. Não é nenhuma novidade que o nosso mundo "civilizado" tem vivido de guerras... Há milênios. São raros os momentos de paz.
Mas quando olho pras criancas, pras minhas filhas, fico sem entender por que fazemos o que fazemos. Não consigo respostas. Nem de filósofos, escritores, gênios, nem da teoria da relatividade, nem do campo unificado, nem do I Ching, nem de Deus.
Vejo excelentes explicadores, "pintores" da realidade. Eles são fantásticos. Mas me mostram o óbvio, ou seja, traduzem perfeitamente minha angústia e impotência. Vejo alguns usando o conhecimento como armas, escudo, ou apenas como um quarto escuro, ou braços do inimigo - que é para onde vão os covardes. Mas respostas: zero.
Só a constatação disso, desse ódio, o chão sob meus pés desaparece. Será que no fundo desse imenso coração congelado há uma gota de amor?
Não estou dizendo para sairmos todos de mãos dadas, pulando amarelinha, beijando a bochecha do padeiro da esquina, soltando guirlandas de flores, abraçando fraternalmente as jabuticabeiras, conversando com as florzinhas pela rua. Mas viver trancado em gaiolas, com pedras e armas nas mãos, com medo do meu semelhante: não me parece um modo de vida razoável.
É que antes de minhas filhas: eu só pensava em mim. Era fácil me esconder atrás de um livro, de uma paixão, de um trabalho, de uma mentira - era fácil me enganar. Hoje já não é mais.
Hoje eu fujo de mim e assisto, de camarote, a minha fuga. Não dá mais. As crianças estão sempre construindo. Não se abatem quando a onda leva embora o castelo de areia que passaram o dia todo edificando. Fazem outro e outro e outro. E rindo. E felizes!
Se o mundo é assim como é, por quê não fazemos outro? Afinal: nós construimos este. Será que entramos, por descuido, por uma porta errada e estamos todos esmagados? Deve ter uma janela em algum lugar. Mas só as gerações futuras poderão descobrir. E quem sabe do outro lado ainda exista alguém enviando cartas escritas à mão, rostos genuinamente alegres, rugas expostas e corações tranquilos.