Suzana Varjão

O sobrevivente (de como se roubam vidas... ou quase!)


Foto: Rejane Carneiro

A xícara de café  estilhaça no chão, ante o berro do garoto. Precipita-se para os fundos da casa e o encontra gesticulando e movendo a cabeça, sucessivamente, na direção do telhado e dos fios que interligam os postes de iluminação pública. Olhos arregalados, gotas de suor escorrendo pelas têmporas, gagueja, ao vê-la surgir no quintal:

-- O outlo... o outlo... vão matar...

Fixa a atenção em um bando de micos: sete, ao todo, contando com um tão pequeno e grudado nas costas do maior que mais parece uma extensão amarrotada de seu pelo. Enfileirados nas cordas de alta tensão, agitam-se e trocam ruídos - cena banal, naquela vila encravada num trecho de restinga do litoral brasileiro.

Com o acesso facilitado pela trilha aérea que passa rente aos muros, haviam criado o hábito de invadir casas e bagunçar cozinhas à cata de comida, tornando-se alvos frequentes dos estilingues da molecada - sob raros protestos, como os dela, que aproveitava as circunstâncias para discursos sem eco em favor da natureza, da vida...

A lembrança da típica algazarra conduz as retinas para além da cerca, em busca dos réus - que aliás produziam mais barulho que resultados, raramente atingindo os macacos pequenos e ágeis, cauda maior que o corpo e tufos nas orelhas que faziam lembrar Albert Einstein. Mas nesse momento não há gente na rua e o único ruído que escuta são os gritos do menino.

As vistas retornam aos saguis a tempo de observar o que parece ser um diminuto bico de ave sumindo na boca de um deles, que cerra os dentes e faz um movimento de quem rasga um pedaço de filé, entregando o restante da refeição ao macaquinho seguinte, que o mordisca, até que outro...

O salto do sagui-líder em direção à casa torna mais evidente a situação. Na parte de baixo de um dos cantos do telhado da varanda divisa um emaranhado de gravetos, de onde partem sons tão urgentes quanto os apelos da criança. Num impulso, apanha uma vassoura e bate contra as vigas de madeira que sustentam as telhas.

O macaco recua, mas a pancada desestabiliza o ninho, e algo despenca no chão. Olhos semiabertos, destituído de penugem, uma espécie de miniatura de frango depenado contorce-se e gorjeia, enquanto os micos partem em debandada e os dois permanecem imóveis por um tempo, fitando a cena, sem saber o que fazer.

Agacha-se e colhe o pequeno pássaro, com a intenção de devolvê-lo ao ninho. Deve estar com fome, pois suga seu dedo mínimo como um bebê sorve o seio da mãe. Há quanto tempo será que não come? E onde estarão os pais? Por que não haviam acudido, ante o alarido da prole, sabe-se lá de quantos filhotes, agora reduzida a um?

A súplica do guri precipita a decisão. Cuidaria do sobrevivente, até que aprendesse a voar. Seria uma oportunidade de cultivar no menino noções de responsabilidade, amor ao outro, doação, compromisso... Leva-o para dentro de casa, constrói um abrigo com uma caixa de sapatos, algodão e lenços de papel e prepara uma refeição.

Após gotejar a papa rala na garganta do passarinho com o auxílio de uma seringa, limpa o excesso de comida, acomoda-o na caixa, disposta sob um abajur, e liga a lâmpada, para melhor aquecê-lo. A pequena ave aquieta-se; o menino retoma as despreocupações; ela retorna à mesa de trabalho.

O gorjeio a interrompe parágrafos depois. A goela do pássaro, desmesuradamente aberta, reclama mais comida - fornecida; respingos de papa pelo corpo recomendam asseio - feito; fezes e urina espalhados pela caixa exigem limpeza - realizada. O bicho retoma a soneca; ela, o teclado do computador.

Algumas linhas mais, e o rito se repete, até o anoitecer - choro, comida, coco, xixi, sono, choro, comida, coco, xixi, sono, choro...

Como podem ser tão dependentes e tão tiranos a um só tempo? Como, insaciáveis, imaginam que podem dispor do outro a qualquer tempo, anulando vontades, identidades, desejos?

Velando aquele frágil sono, tenta recuperar a ternura do primeiro contato; varrer o sentimento de impotência ante os cuidados forçados; mitigar a raiva pelas atenções desviadas, lazeres perdidos, individualidade roubada; entender o que os faz inocentes e perversos, a sensação de gastura em lugar do afeto.

E se o ignorasse, lhe negasse o peito, o deixasse chorar até ficar roxo, engasgar na saliva, morrer sufocado, imerso em fezes e urina? E se...

O piado forte a alerta para nova rodada de cuidados com o pássaro. Observa mais uma vez a face adormecida de seu guri e se dirige à sala de jantar, onde instalara o ninho improvisado.

Amanhece.

(porque hoje é domingo...)