Suzana Varjão

A casa (ou o tempo de construção de um sonho)


Foto: Suzana Varjão

Sente-se plena ao observar o jardim da casa nova, salpicado de flores e plantas de cores, formas e tamanhos variados - rosas, azaleias, margaridas, cravinas, buganvílias... Dá uma sensação reconfortante de conquista, acentuada pelo movimento do balanço preso aos galhos do flamboyant.

Se há uma representação do significado emocional da recém-construída moradia, são esses balanços, objetos de desejo dos meninos, bolsistas de escola classe-média-alta, volta e meia chegando das aulas com vontades inalcançáveis - a piscina da casa de Fulaninho, a churrasqueira do sítio de Sicraninha, o salão de jogos...

Não esquece como os olhos dos pequenos cintilavam ao contar as aventuras no condomínio fechado dos amiguinhos, a alegria da descoberta atropelando as palavras, "tem campo de futebol, tem... tem trepa-trepa... e... e... gangorra... tem também pula-pula...". E tinha balanços, de longe, seus preferidos.

Sentia um aperto no peito por ter que esfriar o entusiasmo deles, explicar "não pertencemos a esse mundo, o que ganhamos mal dá pra pagar as contas de água, luz...". Mas fez uma jura de que chegaria o dia em que não mais precisaria apagar o brilho do olhar dos filhos, matar o sorriso em seus lábios.

E trabalharam duro pra isso. Nada de férias - transformadas em poupança -, celebrações de aniversários, viagens. Os plantões e as horas extras foram multiplicados; os finais de semana, usados para ministrar cursos de culinária, produzir doces, salgados, marmitas, lembrancinhas para festas...

As crianças sentiam o aperto de cinto, as ausências, a impaciência do cansaço e do tempo exíguo. Mas conformavam-se ante o argumento da recompensa, a casa que seria para eles um verdadeiro parque de diversões. "Vai ter balanço?". "Vai". "E roda-gigante?". "Também". Ia ter tudo que pudesse mitigar as privações de então.

Demorou, mas a promessa foi cumprida. No terreno comprado a prestação, ergueram a casa dos sonhos - um belo sobrado de dois andares, com piscina, campo de futebol, salão de jogos, churrasqueira, jardim. Sem faltar, claro, os objetos da humilhação de ontem, ora transformados em símbolos de vitória.

Por isso, ficou um pouco triste com a reação de Mário. Nem bem a casa foi entregue, queria mexer aqui e ali. Parecia não ter gostado da decoração dos ambientes, quando tudo fora pensado nos mínimos detalhes - concepção moderna, cômodos amplos, arejados e delimitados por desníveis de piso.

A escada que dá acesso ao segundo andar foi motor da primeira - interminável - discussão. É uma das soluções mais interessantes da casa! Forma um semicaracol delgado, talhado em madeira de lei, com degraus vazados. E ele querendo descaracterizar, colocar corrimões, fitas antiderrapantes...

O aroma de jasmim aviva outras lembranças. Pena o companheiro não poder desfrutar desse momento. Ele sempre dizia que a única coisa da qual sentiria falta quando saísse daquele "pombal", como chamava a antiga morada, seria o cheiro de jasmim, cultivado por vizinhos no pequeno canteiro do edifício.

Havia mandado plantar vários pés ao redor da nova casa, do que Mário gostava ("é a cara do papai"). Mas acabou se transformando em outro motivo de discórdia. Não fosse sua objeção, já teria mandado arrancar todos, pra fazer sumir de vez aquele cheiro que, agora, remetia a cemitério, flores mortas, lágrimas, adeus.

Augusto é menos implicante. Ficou radiante com a notícia do fim das obras. Sempre que telefona, diz que está ansioso pra "conhecer a obra prima". Prometeu vir no verão, mas as coisas se complicaram no trabalho, "quem sabe nas férias de junho...". Fica um pouco decepcionada, mas entende, mora longe, é muito ocupado, não tem tempo pra nada...

Mário vem vê-la com certa frequência, sempre acompanhado do amigo engraçado, mas acaba irritando-a com a insistência em fazer "adaptações" - nivelar o piso dos ambientes (ora, se tem cabimento!), tirar os tapetes do chão, substituir degraus por rampas, colocar barras nos banheiros, proteção nas quinas dos móveis, e não sei quantas bobagens mais.

Esse domingo ele não veio. Era pra vir, mas não conseguiu. A cachorrinha do amigo ficou doente, tiveram que levar ao veterinário, talvez no próximo fim de semana, quem sabe? O telefone toca dentro de casa. Deve ser ele outra vez, pra saber se o caseiro acendeu as luzes do jardim, soltou os cachorros...

Tenta levantar-se, mas não consegue fincar os pés no chão. O balanço move-se, perde o equilíbrio, a bengala cai, os joelhos dobram...

O que estará acontecendo? Que luz forte será essa?

(porque hoje é domingo...)