Toy Story 4
Tive que fazer uma viagem e no exato momento em que escrevo estou longe (apenas geograficamente) de minhas filhas e de minha companheira.
Semana cheia. Mas um evento em particular vale destacar: a comemoração do aniversário de seis anos de minha filha Valentina. Depois das brincadeiras, do esconde-esconde, do escorregador, dos parabéns, dos brigadeiros, das seis velas assopradas - já em casa, tarde da noite - a mãe capotada na cama -, as duas pequenas, e incansáveis heroínas, resolvem abrir todos os presentes e fazer uma apresentação de teatro exclusiva para mim.
Sou o único na plateia. Tudo corre bem. Dou uma leve cochilada, depois de um dia que começou às seis da matina, no que sou docente repreendido pela aniversariante: "Papai, agora foi a fala da Dodó, você não viu. Abre os olhos, por favor"... "Por favor, por favor". E repetiu. E sublinhou.
Aí reparo como essas meninas são delicadas, doces, femininas. O que contrasta com o jeito ogro de ser. Dodó me pede para mudar de posição, aí percebo que não passo de um sofá, mas um sofá especial. E dorme em segundos sobre minha barriga.
E eu que imaginei que ia morrer sem ter filhos. Que imaginei que não fosse passar dos 22 anos. Não porque quisesse me congelar num rosto jovem pendurado na parede da casa de alguém. Mas porque, talvez, tivesse a esperança de preservar algo de bom em mim. Porque a vida não perdoa.
Viktor Frankl, em seu belíssimo livro "Em Busca de Sentido", escreveu sobre ele, sobre os sobreviventes dos campos de concentração nazista: "Todos nós que escapamos com vida por milhares e milhares de felizes coincidências ou milagres divinos - seja lá como quisermos chamá-los: sabemos e podemos dizer, sem hesitação, que os melhores não voltaram".
Não basta sobreviver. Arrastar-se pelo mundo como alma penada. É preciso estar vivo. A velhice por si só não melhora ninguém. Assim como a morte não melhora ninguém. Os canalhas não envelhecem? O tempo vai passando e a gente vai congelando, vai sorrindo amarelo, vai inflando o ego, vai apagando a luz. A vida só nos exige uma única coisa: coragem.
De minha adolescência lembro-me em particular de um torneio de karatê. Não me senti um "vencedor" no topo do pódio com o meu amigo sofrendo, sendo humilhado pelo pai - na arquibancada -, porque perdeu. Mas também não me senti melhor quando o deixei vencer.
Esse é o nosso mundo. Um tem que perder para o outro ganhar. Um mundo que se alimenta de sofrimento. E não faço aqui nenhum juízo de valor. É o mundo que julga severamente. Nós o criamos assim. Para poder sobreviver você precisa disso. E para se dar bem você vai ter que fazer mais do que vencer: você terá que trapacear... Dissimular, roubar, blefar, mentir. Fazer-se de morto diante de coisas que partiriam o coração de gente com o mínimo de bondade preservada na alma. E vai fingir que não fez nada de errado.
Coisas sórdidas, imorais, moedas de troca. E que passam bem na sua cara. E a gente pode ver isso brilhantemente "pintado" e exposto em "Os Miseráveis" (Victor Hugo), "Almas Mortas" (Gógol), "Os Demônios" (Dostoiévski), "A Revolução dos Bichos" (George Orwell)... "Guernica" (Pablo Picasso). Só para citar alguns.
E, olhando o mundo através das lentes de minhas filhas, um lampejo de luz me revela que nem sempre foi assim. E eu me lembro. Sou ainda aquele cara que se enternece quando o vento lambe o rosto, que se entrega ao abraço sincero de um amigo no momento de dor; que pede perdão de coração quando erra - e eu erro; que se comove quando vê um casal de mãos dadas na rua, ou uma criança brincando com um cão; que se emociona quando assiste a um pôr do sol, ou quando vê um pássaro voando alto no céu; que se pega rindo de um desenho animado besta; que se sacode com o sujeito tocando um blues no chão do metrô - talvez o mesmo cara que Keith Richards descreveu de forma tão tocante, tão pungente, em sua autobiografia -, e assume que o bluzeiro desconhecido toca muito melhor que ele... E você pode ver as lágrimas de Richards borrando a página do livro.
Sabe? Antes de fechar porta de casa, Isadora me chama e diz: "Papai, eu 'quelo' que você leve isso com você na viagem". E me entrega um boneco de pelúcia. No elevador, trago o boneco até meu nariz e sinto o cheiro de minha filha nele. Cheiro de ternura, cheiro do mais puro amor que pode existir num mundo como o nosso. Coloco o esquilo/boneco de óculos no console do carro, meto "Walking Blues" no volume máximo, com Robert Johnson. No peito a sensação de liberdade recém-adquirida dos antigos escravos. Dou a partida no carro. Estou bem acompanhado. Agora nem Godzilla pode destruir o amor que sinto por toda a humanidade.