Suzana Varjão

O beijo e a dor de Zé Meleca

O mundo ao seu redor podia estar em chamas que ele não se alterava


Foto: Rejane Carneiro

Ficava impressionada com a calma de Zé Meleca. O mundo ao seu redor podia estar em chamas que ele não se alterava. Nascido José Agripino da Silva, ganhara o cognome por conta da natureza pacífica, sempre driblando confusão, sempre encontrando uma palavra conciliadora para encerrar bate-bocas e acalmar valentões.

Cabra forjado na lavoura, pés e mãos calosos, rosto tostado de nascença e sol, viera para a cidade grande a seu chamado. Precisava de gente pra tomar as rédeas da criadagem no casarão de beira de praia, e não conhecia pessoa de maior confiança, discrição e disposição para o trabalho do que ele.

Relutara. Dizia que tinha medo do mar — que vira uma só vez, em menino. E ninguém conseguia convencê-lo de que não havia perigo de aquela imensidão de água invadir a casa e a cidade, como via acontecer com o riacho que cortava a fazenda, em dias de chuvas mais esticadas, quando os pastos viravam lagos, tangendo perus, coelhos, preás...

À boca pequena, corria que ele não arredava pé do povoado por outro motivo: estava arrastando asa pela filha do farmacêutico - amigo de Coronel Bezerra, o pai de patrãozinho, falecido, e agora de patrãozinho -, que andava visitando amiúde o rancho, levando consigo Amelinha, pra deleite de Zé, que observava, radiante, as recomendações de entreter a moça.

"Zé, quero cavalgar!"; "Zé, vamos colher goiaba?"; "Zé, quero isso!"; "Zé, aquilo!"; "Zé, aquilo outro!"... E lá se ia, veloz, o domingo — com ele, a mulher amada e a coragem para se declarar, como aconselhavam os peões da granja e redondezas, que atestavam correspondência da moça e cobravam dele uma atitude "de macho".

 
Deixa de ser Zé Meleca, ela acaba se interessando por outro...


Criado nos rigores da bíblia e do cinturão, Zé queria esperar o momento certo, pedir a moça em namoro ao pai, e só então pegar na mão, passar o braço pela cintura... Intimidades outras, só depois do noivado, quando já tivesse garantido o casório, pra isso estava ampliando o puxadinho nos fundos da casa-sede da fazenda, onde vivia, com outros agregados.

Sentia que conspiravam a seu favor, como confidenciava aos lacaios mais chegados, que concordavam, rindo com ele ante a visão de tanta felicidade. Patrãozinho praticamente dera a bênção aos dois — garantia. Podia senti-lo pelos olhares de cumplicidade que trocava com Amelinha, quando trançava o braço dela no seu, piscando o olho pra ele, "cuida dela, Zé"...

Por toda essa confiança, tinha que ter muita responsabilidade. Amelinha era extrovertida, ria de um tudo e por tudo, mas estava na cara que, em matéria de amor, era inédita, o que exigia mais paciência ainda, com o que não concordava a peãozada, aumentando a fervura das discussões e rodas de gargalhadas — estivesse Zé presente ou não.

 
É Meleca, mesmo...


Tanto lhe fustigaram o juízo que resolveu agir. Numa tarde fresca de fim de Verão, levou-a para o celeiro, com a desculpa de pegar forragem para a égua preferida, e lá agarrou-a e tascou-lhe um beijo. A moça deu um berro, o pai acorreu, patrãozinho acorreu, "o que aconteceu?", "o que é isso, Zé?", "ficou maluco?".

Só não foi expulso da fazenda porque patrãozinho tinha muita consideração por ele. Haviam crescido juntos, sob os cuidados de Das Dores, empregada da família, que o Coronel mandara buscar na capital, pois achava as do vilarejo "muito lerdas, não dão conta de nada", sob a resistência da mulher, "você não entende disso, vai cuidar dos seus bois, da casa cuido eu...".

Apesar dos protestos, Das Dores ficou, e acabou praticamente criando patrãozinho, depois que a mãe foi internada em casa de repouso no estrangeiro, pois passara a enxergar coisas que não existiam, falar coisas sem cabimento, conforme explicava o marido amoroso aos que queriam saber "cadê Donana, que sumiu assim, sem falar com ninguém?".

Zé Meleca não conhecia o pai. Sabia apenas que era caixeiro-viajante. E que abusara da hospitalidade do Coronel Bezerra: em rápida estada na fazenda, a caminho dos centros de compra, troca e venda, engravidara Das Dores e fugira, na calada da noite, segundo explicava, indignado, o protetor da negra de lábios carnudos, ancas largas e pouca prosa.

Das Dores morreu dois anos antes do Coronel, fazendo-o jurar que não abandonaria Zé, promessa cumprida em vida e repassada, no leito de morte, para patrãozinho ("devemos muito a Das Dores, foi como uma mãe pra você, Zé não teve o mesmo estudo, tem cabeça mole, mas é de confiança, é quase da família...").

Mas depois do episódio do celeiro, as coisas mudaram na estância. As visitas de Amelinha e do pai rarearam, e quando aconteciam, resumiam-se a chás na casa-grande e bate-papos com patrãozinho, que nunca mais falara com Zé, muito menos pra pedir que cuidasse de Amelinha, com quem, aliás, se casou, um mês depois do ocorrido.

Se já não era homem de blá, blá, blá, Zé ficou ainda mais taciturno. Enfiou a cara no trabalho, e nunca mais acocorou-se junto à fogueira, com outros criados. É verdade que haviam trocado as gargalhadas de outrora por risos discretos, de canto de boca, em claro respeito à sua dor, mas ouvia referirem-se a ele, vez por outra, como Zé Trouxa, Zé Bobo, Zé Anta, e por aí vai...

Foi quando aceitou o convite pra trabalhar no solar da praia. E pra surpresa de muitos, parecia ter reconquistado o sossego da alma, superado a perda da amada, o beijo imprudente, a traição de patrãozinho... Voltara a ser o velho e prestativo Zé que ela conhecia, logo conquistando a simpatia dos vassalos locais.

Contratado para supervisionar os serviçais do casarão, encantou-se com a água translúcida da piscina, que logo aprendeu a cuidar, pra descanso do encarregado, que fazia bicos em outras residências pra aumentar o ordenado, deixando essa e outras tarefas a cargo do agora Zé Porreta.

E não havia coisa da qual gostasse mais de fazer. Cansara de flagrá-lo observando atentamente o grande espelho d´água e apressando-se em colher qualquer folha, graveto, flor, cisco mínimo que caísse na piscina, onde agora seu corpo boia, ninguém sabe como, ninguém sabe por que...

Sentada na grama, em meio ao vaivém de policiais, pensa que John Lennon tinha certa razão ao dizer que "a ignorância é uma espécie de bênção, se você não sabe, não existe dor"; e que, independentemente do resultado da perícia, teria sido melhor que a longa conversa daquela noite não tivesse ocorrido, e Zé não ficasse sabendo que era filho bastardo do Coronel.

(porque hoje é domingo...)