Cassiano Antico

Quando ouvi as vozes de minhas filhas e percebi que eu era cego

Minha consciência tem dentes afiados e um pescoço de aço


Foto: pxhere/Creative Commons

"Aquele que vive para si e não se dedica aos outros, não vive para ninguém" (autor desconhecido) 

Outro dia vi uma senhora cega com dificuldades para atravessar a rua. Eu vi. Um pensamento maldoso me tentou. Sabe o diabinho que habita o âmago até de um São Sebastião? "Não é problema meu. Ninguém!!, ninguém reparou que você a viu. Nem a cega, obviamente. Você está atrasado. Deixa pra lá. Pega nada".

Mas eu estou vendo. Eu sei. Pegou em mim. E isso basta. Por quê? É pra deixar pra lá? Cada um com os seus problemas? Aquela senhora poderia ser a minha avó, ou poderia estar perdida. É apenas mais um da nossa espécie precisando de ajuda. Porque é moleza ajudar quem nos favorece. É "mamão com açúcar" ser solícito com quem nos beneficia. Fazer o bem é o mais suave deleite que se pode experimentar na vida quando se tem uma plateia seleta a nos ovacionar.

Tomei um soco modo Tyson direto na boca do estômago. Lembrei-me de um aforismo do Nietzsche: "Se queres ser feliz nesse mundo, estrangula sua consciência!“. O problema é que a minha consciência tem dentes afiados e um pescoço de aço. Fica difícil. Mas a porrada maior e que fez minha alma refletir mais profundamente veio das minhas filhas. Eu estava sozinho, mas pude ouví-las me pedindo para ajudar aquela senhora: "Papai, ajuda a velhinha". Assim como sempre falam: "Papai, você está demorando no banho, vai acabar a água do nosso planeta". Tanto Valentina (cinco anos) quanto Isadora (três anos).

O amor puro que existe nas crianças. Lembrei-me que ainda tenho um coração. Ele só está meio destroçado como as pontes da Cidade de São Paulo. Fui lá e ajudei. Não me custou nada. Muito pelo contrário. Segurei suavemente mãos tão belas e enrugadas - que pareciam mapas, rios que desenham as florestas -, revelando o longo caminho de uma vida percorrida. Olhei devagar, com calma - assim como nossos passos pelo alfalto de piche. Senti paz. Estranhamente humano.

Mas foi só depois de um tempo que pude constatar que não era exatamente a senhora cega que eu estava ajudando. Era a mim mesmo. O cego ali era eu.