Cassiano Antico

Para descobrir que a vida é bem diferente daquela do Instagram

O dia a dia de uma casa  está longe do aspecto glamuroso


Foto: pxhere/Creative Commons

Identifico-me muito mais com o improviso da guitarra de um R.L.Burnsise ou com o martelo no violão de um Blind Willie Johnson à perfeição engessada de um Joe Satriani. Porque para mim a santidade é imperfeita, e tudo que é belo, tudo que nos toca fundo, tudo que nos comove tem algo de inacabado, de mistério, algo de "mais será revelado", como o clarão de raio no meio da tempestade. Se Deus gostasse tanto assim de marionetes exatas, não permitiria a existência de um Ray Charles. "Se Deus é amor, e o amor é cego, Ray Charles é Deus".

E se nossa imperfeição já é perfeita, como viver em família? Boa pergunta. Estamos todos aprendendo. Família é uma casa viva. Um organismo vivo. Precisa de manutenção diária. Você precisa  tirar o lixo do banheiro, o lixo da pia, o lixo da cozinha. Precisa regar as plantas, até o cacto de vez em quando. Abrir as janelas para o ar entrar. 

Muita gente olha a vida de um casal num Instagram e pensa que é um mar de rosas. Uma ilha de Caras. O filho nadando no mar com o pai, aquele por do sol perfeito, ali ninguém leva caldo da onda e, se leva, não aparece na foto, o moleque não chora, só ri, a fralda está sempre seca; o bonito sorriso da mãe chupando picolés com a filha no barco não mostra a cara (de saco cheio) do pai de tanto bater fotos. Mas o curioso é que dá até para ouvir a trilha sonora de fundo, música de espera de telemarketing, tudo como um programa de auditório tipo Faustão.

Até aí tudo bem. Tudo bem o lixo se acumulando pela casa junto com as moscas e pulgas e baratas. O pior lixo é de outra natureza. Não aparece nem na ressonância magnética. Coisas como indiferença, egoísmo, falta de gentileza, autopiedade. Pode ser eu lá, como um Álvaro de Campos - "Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia" -, agarrado a uma personagem do livro "O Capote", ou sendo um copiloto de uma série da Netflix, vivendo a vida alheia com tanto afinco, com tanto esmero e pontualidade, me emocionando, lágrimas escorrendo, enquanto minha filha mendiga por minha atenção.

E o amor é simples. O amor não é pavão. O amor não é um Pavarotti berrando "Figaro" aos quatro ventos. Tá mais prum cafuné da vó. O amor é me ajoelhar para amarrar o cadarço do tênis da minha filha; é fazer a mamadeira dela; é dar minha mão quando os degraus forem altos demais para suas pernas pequenas. É dizer não. Dói. Mas é preciso.

O dia a dia de uma casa  está longe do aspecto glamuroso apresentado no antigo seriado "O Casal 20". A mulher não acorda com os dentes escovados e nem o marido com desodorante no sovaco. Mas, de repente, a mágica acontece... Sua filha de dois anos dorme no seu peito e você sente o seu coração bater junto com o dela, em completa sintonia, harmonia... Como um só coração. E você não vai se lembrar que existe câmera. E nem que você é você e ela é ela, mas algo anos luz de uma mera palavra que tenta dar significado.

Talvez você  descubra que existe alguém na palavra amor. Isso. Talvez, a compaixão que lhe era estranha, assim como bons sentimentos: encontre uma rachadura em você.

E vai ter atrito. E é bom e saudável que tenha. E vamos avante! O único lugar que não tem atrito algum, e que reina a paz universal é no cemitério. E isso porque cada um fica trancado em seu próprio caixão. Sozinho. 

A vida não é um alfalto perfeito, um tapetão sem buracos, sem lombadas; não é uma reta por onde desliza aquele cadillac automático cheirando a novo. Está mais pra uma kombi zuada, nas curvas da estrada de Santos, com o câmbio manual, sem a marcha ré, e com o freio bastante duvidoso. Mas foi a Komboza que parou quando você pediu carona. E é nela que estamos todos nós.