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Livro raro com dedicatória de Irmã Dulce é localizado em mosteiro

O livro é uma relíquia de segundo grau (objetos que um santo tocou)

Foto: Leiamais.ba
O Mosteiro de São Bento, em Salvador
O Mosteiro de São Bento, em Salvador

Um livro com uma dedicatória de Irmã Dulce, canonizada neste domingo (13 de outubro) pelo papa Francisco, que agora, oficialmente acaba de ser proclamada Santa Dulce dos Pobres, está guardado no acervo da Biblioteca do Mosteiro de São Bento da Bahia e, se torna parte integrante de uma Obra Rara da instituição.

O livro, que pode ser considerado uma relíquia de segundo grau (objetos que um santo tocou) do Anjo Bom da Bahia, intitulado ‘Irmã Dulce dos Pobres’, contém uma dedicatória da santa aos monges noviciados em 24 de abril de 1990 e estava perdido dentro do imenso acervo bibliotecário do Mosteiro de São Bento da Bahia (que possui um acervo entre 200 a 250 mil livros).

"Irmã Dulce deixou um livro chamado ‘Irmã Dulce dos Pobres’ e fez uma dedicatória aos noviciados do Mosteiro de São Bento em 24 de abril de 1990. Esta obra, mesmo do século 20 já integra as Obras Raras da nossa biblioteca. Eu encontrei este livro em nosso acervo e é uma verdadeira pepita de ouro termos um livro com uma dedicatória de uma santa baiana e brasileira conosco. Nós o consideramos uma relíquia espiritual de Santa Dulce do Pobres . É um verdadeiro um achado”, diz Dom Sebastião, monge beneditino há 8 anos e responsável pela Biblioteca do Mosteiro de São Bento da Bahia, especializada em Filosofia, Teologia, História, Artes, Literatura e Direito.

A Biblioteca do Mosteiro de São Bento possui um valioso acervo acumulado e conservado ao longo de mais de quatro séculos de existência, o espaço possui uma notável coleção obras dos séculos 16 ao 19, tornando esta biblioteca como uma das mais importantes do país.

A preocupação de preservar o legado cultural ao longo da história sempre foi uma característica marcante dos mosteiros beneditinos. 

O Mosteiro de São Bento da Bahia é o primeiro das Américas. Sua história no Brasil remonta ao ano de 1582 (século 16), quando a partir de uma ordem do Mosteiro de Tibães, em Portugal, os monges beneditinos se instalaram em Salvador e iniciaram uma vida ininterrupta de oração e trabalho (em latim ‘Ora et Labora’), que já dura mais de 430 anos.

O ideal de uma vida monástica consagrada a Deus, que foi instituído por São Bento, fundador e patriarca da ordem beneditina, é retratado no documento ‘Regra de São Bento’, uma espécie de código de virtudes que tratam de questões como boas obras, obediência, silêncio, humildade e oração.

São Bento também era um grande admirador da Literatura. Profundo amante dos livros, acreditava que por meio da leitura o homem pode adquirir conhecimento e obter sabedoria para sair da ignorância e se conectar com Deus. O santo erradicou o analfabatismo entre os monges dentro da congregação que ele mesmo criara. São Bento determinou que todos os monges que passassem a viver sob sua regra, soubessem ler e escrever.

Para o santo, o estudo por meio dos livros é um importante alicerce que auxilia na construção e fortalecimento de princípios cristãos na vida de um monge.

O estudo (em latim Legere), se une a oração e ao trabalho, formando um tripé que sustenta a vida monástica.

Ao aportarem em Salvador, os monges trouxeram consigo alguns documentos, como partituras do canto gregoriano, manuscritos, missal (livros que contém as missas que são celebradas durante o ano), saltérios (Livro dos Salmos com 150 Salmos), breviários (livro que reúne os ofícios que os sacerdotes católicos rezam diariamente), iluminuras (elementos decorativos e ilustrativos que acompanham livros manuscritos do período medieval) e claro, a Bíblia.

Entretanto, não só obras relacionadas aos rituais de missa e da vida monástica compunham o acervo do monges. Livros de outras áreas do conhecimento fizeram parte deste acervo.

“Nós somos o primeiro mosteiro das Américas e o primeiro do Brasil, não à toa o Mosteiro de São Bento da Bahia recebeu o termo de Arquicenóbio (comunidade de monges que vivem juntos) do Brasil. Os monges trouxeram muitos livros relacionados a diversos saberes com temas variados. Então, pode-se dizer, que com os primeiros monges, também veio a primeira biblioteca, pequena, mas que era funcional. A Biblioteca do Mosteiro de São Bento é a mais antiga do país que funciona ininterruptamente desde quando o Brasil era Colônia de Portugal. A nossa biblioteca é a segunda maior biblioteca de Obras Raras do Brasil. O nosso acervo preserva um legado cultural da história brasileira e baiana”, completa Dom Sebastião, que é paraibano, da cidade Cajazeiras. Ele já foi professor de Biologia em uma escola de João Pessoa, capital da Paraíba.

O monge, que gostava de motos e sempre teve “fascínio pelo sagrado”, largou tudo para viver em um monastério "por amor a Cristo".

“Sempre vi na vida religiosa, o sagrado, como algo sobrenatural e inexplicável que me conecta a Deus. A vocação para a vida religiosa é um chamado do Cristo e eu me sinto plenamente realizado, aqui eu me encontrei”, conta ele, que desde pequeno, já tinha uma certa aptidão para lidar com livros. “ Meu pai herdou uma biblioteca do meu avô com livros de História e Ciências Naturais, eu lia aqueles livros e ficava encantado com o conhecimento que vinha daquelas obras. Eu ajudava meu pai a restaurar as capas deterioradas dos livros e deixá-los novos em folha”.

Dom Sebastião conta que o acervo da Biblioteca de São Bento foi largamente enriquecido com diversas obras ao longo dos séculos. No passado, os monges beneditinos eram nomeados para trabalhar com educação. Era comum que as famílias abastadas enviassem seus filhos ao mosteiro para adquirir uma ampla e erudita formação educacional. 

Livros de Latim, Grego, História Universal, Mitologia e Antiguidades se tornaram obras fundamentais para tal ofício e também integravam parte de obras utilizadas no currículo de formação para se tornar um monge, aliados aos estudo dos saberes de Filosofia, Teologia e História. 

Foi sendo agregado ao acervo da biblioteca uma vasta coleção de manuscritos, iluminuras, livros, documentos históricos, cartas, testamentos, mapas, desenhos, plantas de arquitetura e partituras musicais.

“Haviam monges que eram poetas, escreviam cartas e romances. Ao longo da formação de Salvador, foram entregues documentos da Câmara Municipal, quando eles instalaram e instituíram determinadas permissões. Há registros históricos de doações de terras na cidade, documentos estes, que eram entregues para nós. Há documentos cartográficos, livros de geografia e mapas. Há gravuras que serviam de modelo para os artistas desenvolverem as pinturas tão comuns naquela época. Todas as formas impressas de papel que contivessem informação escrita relevante e documentos iconográficos (desenho, pintura, gravura, ilustração e fotografia) foram integradas à biblioteca e assim, o seu abrangente acervo foi sendo constituído, não haviam somente livros”, relata Dom Sebastião.

Os destaques 

Inúmeras obras literárias se destacam no acervo da Biblioteca do Mosteiro de São Bento. No entanto, para Dom Sebastião, é difícil apontar com precisão a obra mais importante ou mais valiosa, devido a sua imensa riqueza cultural.

“É extenso e variado [o acervo], creio eu que não é possível determinar qual obra se destaca mais em detrimento da outra. Todas são importantes, agora claro, algumas chamam realmente a atenção devido a sua raridade. Existem algumas obras e alguns livros que são peças únicas, que não há nenhum outro lugar do mundo”, diz.

Apesar da dificuldade de elencar um 'top five' das obras literárias, ele ressalta algumas obras que chamam a atenção devido a seu conteúdo extraordinário. A Biblioteca do Mosteiro de São Bento é tombada pelo Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) desde a década de 1930.

Literatura - “No ramo da Literatura, eu destaco o livro que contém as 'Cartas Selectas de Padre Antônio Vieira' (que está digitalizada e pode ser vista em http://saobento.org/livrosraros/?p=94 - copie e cole o link em seu navegador), ordenadas por José Ignácio Roquette, um teólogo português e editado no ano de 1856 (século 19), que é de um vocabulário e escrita inigualáveis e uma preciosidade da literatura portuguesa”. 


A obra do padre Vieira está no Mosteiro

Geografia - “Na área de Geografia, há mapas do século 19 até a metade do século 20, que são verdadeiras raridades. Estes mapas retratam geografia do país no passado, o formato dos estados e como a cartografia do Brasil foi mudando ao longos dos anos. É interessante”.


Império do Brasil (mapa mudo) e os Países Limítrofes e o Mapa da Província da Bahia com as suas 24 comarcas 

Teologia - “Em Teologia, há a ‘Imitação de Cristo’ (obra também digitalizada - http://saobento.org/livrosraros/?p=178 - copie e cole o link em seu navegador). Sua iconografia é muitíssimo bela, sendo apreciada por pessoas que cursam Belas-Artes. É um livro ricamente ilustrado e muito bonito de ser admirado”. 

Há também o Alcorão. “Os monges não se limitaram apenas ao mundo católico, eles se preocuparam pelo conhecimento em geral de outras religiões inclusive", completa o monge.


L’imitation de Jesus-Christ (A Imitação de Jesus Cristo) é uma obra do século 19 e está escrita toda em francês

Regra de São Bento - “A Regra Santíssima de São Bento (que também está digitalizada - http://saobento.org/livrosraros/?p=41 - copie e cole o link em seu navegador), data do ano de 1899 (final do século 19). É um livro que estabelece todos os dogmas e conjuntos de preceitos da ordem beneditina. Nele, São Bento prescreve os autores católicos que os monges devem estudar como Santo Agostinho, São João Cassiano e os padres apologistas (padres que escreveram em defesa da fé católica e dos cristãos perseguidos) como Santo Inácio de Antioquia e São Justino. Ler esta regra é imprescindível para quem deseja compreender como é a ordem beneditina”.


Pequeno, mas precisoso: a regra taz a famosa oração 'Cruz Sagrada' e faz parte dos Livros Raros - Foto: Morgana Montalvão

Música - “Existem partituras musicais que não existem em nenhum outro lugar do mundo. Estas partituras foram produzidas em Portugal e nem mesmo o Mosteiro de Tibães as têm e elas estão aqui, em Salvador”.

Filosofia - “Nós temos ‘As cartas de Sêneca a Lucíolo’ (coleção de cartas escritas pelo filósofo Sêneca no final de sua vida) que não foram traduzidas ainda ainda para o português do Brasil. A primeira tradução deste livro foi em 2015 para o português de Portugal [sic]. Até então, o Brasil não conhece esta obra de Sêneca. Houve um projeto de pesquisa da então Faculdade de São Bento e foi traduzido alguns capítulos deste deste livro. Na pesquisa, um professor e filósofo tece comentários e faz algumas observações a respeito desta obra. Então, é algo inédito”.

Dom Sebastião conta que há ainda livros de astronomia, já que, no século 16, os monges tiveram que estudar o calendário lunar e solar.

“Os monges tiveram que estudar astronomia para saber quando o período correto de celebrar a Páscoa no hemisfério sul, por isso eles se debruçaram também sobre esta área do saber. O estudo é sempre algo muito bem quisto para nós. No Brasil Colonial, os antigos monges viajavam à Europa para adquirir livros e saber as novidades não só na área de Teologia e Filosofia mas também, em outras áreas de Conhecimentos Gerais. Foi desta maneira também, que o nosso acervo bibliotecário foi crescendo”.

A biblioteca também guarda livros específicos do Direito, a exemplo do antigo Tribunal da Relação (https://bit.ly/2M1hGdW -copie e cole o link em seu navegador), intitulado de Relação da Bahia, uma espécie de Tribunal de Apelação da Colônia Portuguesa no Brasil, um tipo de regimento que cria o primeiro Tribunal de Justiça que se instalou em Salvador. 

“Nós temos documentos que falam sobre o Direito e a aplicação das primeiras normas jurídicas implantadas no Brasil. O Tribunal da Relação retrata o processo de como a estrutura da Justiça se estabeleceu no país, especificamente na Bahia e suas jurisdições. Estes documentos narram os regulamentos jurídicos e históricos da época do Brasil Colônia, como cartas e decretos”, salienta o monge Dom Sebastião.

Arquivo do Mosteiro de São Bento da Bahia

O setor de arquivo do mosteiro armazena os documentos pessoais dos monges falecidos, os documentos que eles produziram ao longo da vida e os documentos dos monges que estão vivos - as chamadas cartas de profissão (a carta é um elemento de afirmação dos monges com as regras de vida estabelecidas por São Bento).

O setor do Arquivo do Mosteiro de São Bento pode ser considerado a 'joia da coroa' ja que abriga os Livros do Tombo ( http://saobento.org/livrosdotombo/), uma reunião de um conjunto documental que remonta à construção do patrimônio dos monges beneditinos na Bahia ao longo dos séculos.

Os livros relatam as doações para o mosteiro de um modo geral. Eles estão divididos em: Livro Velho, Livro I, Livro II, Livro III, Livro IV e Livro V, todos possuem encadernação de couro de porco com o brasão da Ordem Beneditina A escrita é em Língua Portuguesa com expressões em Latim. 

"Estes livros trazem um registro histórico da Bahia e narram com riqueza de detalhes fatos importantes do Brasil Colonial e da própria formação de Salvador. Além de contar os registros de doações de bens e terras que compõem o patrimônio do Mosteiro de São Bento do século 16 ao século 19, os livros descrevem personagens históricos como Catarina Paraguassu, Garcia D´Ávila e Gabriel Soares de Sousa (comerciante e navegador português, conhecido por ter escrito o Tratado Descritivo do Brasil - registro que narra um dos primeiros relatos sobre o Brasil do século 16 com dados geográficos, botânicos, etnográficos e lingüísticos) e descreve as famílias mais tradicionais dos séculos passados. Ou seja, os livros contam, de maneira minuciosa e extremamente rica, um panorama da história de formação do nosso país”, diz Dom Anselmo Rodrigues, monge e sacerdote responsável pelo Arquivo do Mosteiro de São Bento. 

A importância histórica, social e cultural da coleção dos Livros do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia fez com que ela fosse denominada pela Unesco como patrimônio da Memória do Mundo.

Natural de Maceió, Alagoas, Dom Anselmo está há 11 anos no mosteiro e além de cuidar do setor de arquivos, também é responsável pela Liturgia e a prataria. Para o monge, este setor é o suprassumo de todo o acervo bibliográfico do Mosteiro de São Bento. Além dos Livros do Tombo, o arquivo reúne outras obras de imenso valor cultural e contexto histórico. A riqueza literária e iconográfica é tamanha, que até o seu acesso é mais restrito do que o da biblioteca.

“Além dos Livros do Tombo e as cartas de profissão, o arquivo reúne livros editados que se tornaram exemplares raros, como o livro do historiador Frei Vicente do Salvador, cronista baiano e autor da ‘História do Brasil’ (primeiro livro que conta a história do país descrevendo de maneira fidedigna, informações sobre o modo de vida dos colonos e das populações indígenas; é dividido em cinco volumes). O livro 'Documentos Históricos do Arquivo Municipal', reúne as Atas da Câmara Municipal de Salvador, com documentos que vão de 1625 a 1641.Tem a Biblioteca de Ouro de D. José Lohr Endres, monge alemão responsável por trazer ao acervo do arquivo grandes obras que abordam temas de Teologia, História e a formação da ordem beneditina. Há os livros de crônicas dos monges de Beuron (Alemanha), congregação responsável por implantar mudanças e restaurar a vida monástica dos Mosteiros de São Bento no Brasil, no final século 19 e nas primeiras décadas do século 20 e dois livros de D. Clemente Maria da Silva Nigra, monge que era historiador da arte e que escreveu sobre construções e artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Ainda têm livros que contam histórias de vida alguns santos da Igreja Católica”, conclui Dom Anselmo.

O livro mais antigo

É no Arquivo do Mosteiro de São Bento que está guardado a obra literária mais antiga de todo o seu precioso e inigualável acervo bibliográfico: ‘Comentário as Sentenças de Duns Scoto’, de Fr. Nicolau de Orbellis, escrito em Latim, com capa em pergaminho em estilo monástico publicado no ano de 1503 ( é isto mesmo, a obra data do início do século 16. O ‘Descobrimento do Brasil’ é três anos mais velho que este livro).


Com encadernação monástica, o livro, em latim, tem o título de 'Fusce iudicia Duns Scotus' - Foto: Morgana Montalvão

Johannes Duns Scoto, foi um grande filósofo escolástico (a Escolástica é um método filosófico que estuda a fé cristã) e teólogo, nascido na cidade de Duns, na Escócia no ano de 1266. O livro também encontra-se digitalizado (http://saobento.org/livrosraros/?p=221.- copie e cole o link em seu navegador).


História do Brasil foi escrito em 1627, sendo um relato do Brasil do século 16 - Foto: Morgana Montalvão


Este livro reúne as Atas da Câmara Municipal de Salvador de 1625 a 1641 - Foto: Morgana Montalvão


Alguns livros de D. José Lohr Endres sobre a Ordem de São Bento no Brasil


São Camilo de Lellis (1550-1614) criou a Ordem São Camilo e é o padroeiro dos enfermos e dos hospitais - Foto: Morgana Montalvão


A Epistolæ et Evangelia (1904) tem encadernação feita em couro marrom e traz na capa, ao centro, apliques em prata

Todos os livros, antes de fazerem parte do acervo bibliotecário, passam por um processo de higienização, limpeza e catalogação. Primeiro, os livros são higienizados com trinchas e pincéis de cerdas macias.

Toda a sujidade e poeira são retiradas página por página. Este processo é chamado de higienização mecânica. Logo após este processo os livros são classificados e catalogados.

Nos livros do setor de obras correntes da biblioteca ( obras comuns, do século 20 em diante) é utilizado o código de catalogação anglo-americano, conhecido como AACR2, o qual se estabelece um padrão de descrição bibliográfica do livro - a representação de uma obra dentro de um software de gerenciamento de biblioteca.

“Esta catalogação estabelece o nome do autor, a questão de título e o assunto (chamado ponto de acesso). É através destas informações que nós recuperamos o livro para que as pessoas possam utilizá-lo”, explica Letícia de Oliveira Araújo, bibliotecária do Mosteiro de São Bento desde 2015.

Em relação à classificação, a bibliotecária afirma os livros passam pela Classificação Decimal de Dewey (CDD), um processo de caráter mnemônico (conjunto de técnicas utilizado para auxiliar no processo de memorização), o qual divide o conhecimento humano em dez classes, utilizando uma notação com números decimais.

000-Generalidade
100- Filosofia e disciplinas relacionadas
200-Religião
300-Ciências Sociais
400-Línguas
500-Ciências Puras
600-Tecnologia (Ciências Aplicadas)
700-Artes, Recreação e Artes Cênicas)
800-Literatura (Belas Letras)
900-Geografia. Biografia. História.

Esta classificação estabelece os assuntos contidos nas obras literárias e assim os livros são dispostos nas prateleiras obedecendo esta ordem numérica.

Já a Tabela de Cutter é uma tabela que indica a autoria de uma obra literária. A tabela estabelece o Código de Cutter, que tem como base, a identificação do livro pelo sobrenome do autor. Esta tabela é utilizada na codificação dos livros, que aliados ao CDD, auxiliam na ordem de organização da biblioteca. 

“O livro vai receber uma notação de assunto e uma notação de autor. E através destas informações a gente recupera o livro e dá uma organização à biblioteca. Os livros recebem um lugar na estante de acordo com a classificação decimal (CDD) e classificação de autor (Tabela de Cutter)”, explica a bibliotecária.

Letícia afirma que a Biblioteca do Mosteiro de São Bento ainda recebe doações. No entanto, é levado em consideração a estrutura da biblioteca, estado do material e o acondicionamento destes livros. 


Letícia Oliveira é bibliotecária do Mosteiro de São Bento desde 2015 - Foto: Morgana Montalvão

Há livros de doadores comuns e bibliotecas inteiras de particulares como a de Pedro Moacir Maia (Salvador, 1929- 2008), que foi diretor do Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia (https://mas.ufba.br - copie e cole o link em seu navegador ) entre 1982 e 1989.

Maia foi professor , tradutor, conferencista, curador de exposições e membro da Academia de Letras da Bahia e doou 8 mil obras de seu acervo particular à Biblioteca do Mosteiro de São Bento.

Em 2007, relata Letícia, a biblioteca recebeu alguns livros que pertenceram a um professor de Filosofia e Ciência Humanas da Ufba, que estavam há muito tempo em posse de sua família, datados do século 17 e do século 18. “Ele quis doar estas obras ao mosteiro pensando na preservação e no legado destes livros”, complementou.

Obras raras

A Biblioteca do Mosteiro de São Bento ainda possui o setor de Obras Raras e Especiais com obras que vão do século 16 ao 19. Estes livros possuem grande riqueza histórica, literária, estética e grande valor cultural. 

O acervo de Obras Raras conta com 13 mil livros - 60 deles, foram digitalizados e disponibilizados de maneira gratuita no site http://saobento.org/livrosraros/, em um trabalho lançado no ano de 2014 pelo Mosteiro de São Bento da Bahia.

Este projeto de digitalização durou cerca de dois anos e contou com investimentos de R$ 500 mil, vindos do Fundo de Cultura da Bahia, destinado pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

No site há livros de Medicina, História, Literatura, Latim, Francês, Espanhol, Galego, Italiano e Árabe. As pessoas podem ter acesso a um passo de um clique a obras que fazem parte de um acervo único e inigualável.

Dentre as obras literárias que estão disponibilizadas gratuitamente destacam-se: A Suma Theologica Secundae, de São Tomás de Aquino, de 1534; Obras de La Gloriosa Madre Santa Teresa de Jesus (Santa Teresa D’Ávila), de 1704; Obras completas de Luís de Camões, de 1873; o Index Librorum Prohibitorum, do Papa Bento XIV, de 1764; História dos Judeos, de Flavio Josefo, de 1793; Conto a meus filhos, de August Von Kotzebue (dramaturgo alemão), de 1858 e Finezas de Jesus Sacramentado, do padre João José de Santa Theresa, de 1815.

“Para um livro ser considerado uma Obra Rara é levado em consideração o limite histórico, as características físicas da obra, a unicidade e a particularidade dos exemplares”, diz Letícia Araújo.

A bibliotecária ainda enfatiza quanto à beleza tipográfica das obras é observado se o texto está dividido em duas colunas, se possui Reclamo (modo de expressar a ordem progressiva das folhas que consiste em escrever na margem inferior da última página de um fascículo as primeiras palavras do seguinte), Corandel (coluna de texto, alinhada às margens laterais, fora da mancha do texto principal), Vinheta (pequeno desenho que serve de ornamento ou ilustração a um texto), ilustrações e encadernação luxo (capa de veludo tecido com fios dourados ou prateados), como o Evangeliário (livro litúrgico que reúne os Evangelhos lidos pelos padres nas missas), de 1861.

Já nas coleções de Obras Especiais estão englobados os livros de artes ou livros de artistas, que possuem algumas peculiaridades como: tiragem reduzida, exemplares numerados, em papel especial, com ilustração de pessoas renomadas, dedicatória de autores renomados ou pessoas importantes, livros de contribuição significativa para a ciência e a cultura e obras de edição esgotada.

O Setor de Obras Raras é guardado em uma sala especial. Nele, só pode ter acesso pessoas autorizadas utilizando luvas e máscara descartável, já que o odor dos livros antigos é muito forte. Há um termômetro do tipo termo-higrômetro, que afere a umidade relativa do ar e a temperatura do local.

Laboratório de Conservação e Restauro

O Mosteiro de São Bento mantém um Laboratório de Conservação e Restauração de Livros e Documentos que é parte integrante da Biblioteca do Mosteiro de São Bento da Bahia. 

É neste setor que os livros passam por uma série de etapas que envolvem limpeza, medição de acidez, banho, restauração, secagem, colagem e costura.

Primeiro, é feita a ficha técnica do livro. Esta ficha analisa que tipo de obra é: livro, obra rara, revista, folheto ou qualquer tipo de outro documento. Nesta ficha, é descrito quem é o autor, o título, dimensões do livro ou documento, o número de páginas, volume da obra e fascículo. Uma foto do livro é tirada e anexada a esta ficha.

Após este processo é feito um teste químico vai medir o nível de acidez (pH) das páginas do livro. É o teste químico que determina se o livro vai passar pelo banho de água ou não. Se o livro estiver com pH alto, o recomendável é que ele não passe pelo processo de restauração, pois está muito frágil e pode se deteriorar por completo.

Se o livro ou documento não estiverem aptos à restauração, irão passar por uma espécie de lavagem com pó de borracha para ser clareado e devolvido. A ficha descreve que o livro não poderá ser restaurado e recomenda a melhor maneira de o livro ser acondicionado e guardado.

Se o nível de acidez não estiver alto, o livro começa a passar pelas etapas de restauração. Após a descrição na ficha técnica, faz-se a numeração a lápis, folha por folha do livro. Esta numeração é transferida para o Mapa de Caderno, já que o livro será desmontado para ser higienizado e restaurado. O Mapa de Caderno após todo o processo de restauro, irá informar a montagem da sequência de páginas originais do livro, como explica Jonatan Trindade, restaurador do Mosteiro de São Bento há oito anos.

"O Mapa de Caderno é necessário pois cada obra tem sua numeração. Tem livro, principalmente de Obras Raras, que vem com a numeração com numeração em cardinal, aí de repente chega em algarismo romano, às vezes vem com letras e tem ocasiões que não tem nem numeração de páginas, então, se desmontarmos sem fazer esta numeração a lápis, na hora de remontá-lo novamente, fica complicado saber a ordem das páginas. É através do Mapa de Caderno que eu consigo montar o livro e ordenar na sequência correta de páginas”, diz o restaurador.

Após o Mapa de Caderno, o livro é desmontado e higienizado. É tirado toda a sujidade como poeira ou cocô de inseto, cola ou costura e iniciado o processo de banho. 

O restaurador conta que cada página é banhada de 20 em 20 minutos, primeiro com água morna. O segundo banho é com água fria e é feito com hidróxido de cálcio para paralisar a ação de acidez e embranquecer a folha. Se o livro estiver em bom estado e continuar muito sujo pode-se dar um terceiro banho de 5 a 10 min para tirar qualquer resquício final de sujidade.

Após este processo, as páginas são colocadas em telas em uma secadora de um dia para o outro. Se o tempo estiver úmido, a secagem dura de três a quatro dias. Se estiver no verão, após um dia, as páginas estarão secas.

Agora vem a parte mais complicada do processo: uma folha do livro será pesada com uma balança de precisão; é medido a largura e a altura da folha - um cálculo é feito para determinar quantas gramas de polpa de papel cada folha vai levar para ser restaurada (reenfibragem).

"Os livros que chegam, tem folhas danificadas, rasgadas ou furadas, comidas por insetos. As folhas deterioradas precisam ter o seu espaço preenchido, daí entra esta polpa de papel. A polpa vai cobrir estes espaços danificados ou corroídos, restaurando-a. O cálculo é feito para saber quantas gramas de polpa cada folha vai levar, a polpa não é colocada de maneira aleatória”, completa o restaurador. A polpa é produzida em um liquidificador, misturada com água deionizada (água que tem todos os sais minerais removidos). 

A Máquina Obturadora de Papel (MOP), é quem faz o processo de reenfibragem das folhas - preenchendo os espaços danificados. Na máquina, uma quantidade determinada de folhas são colocadas em uma tela de náilon e de maneira alinhada para que não fiquem tortas . Tal qual uma máquina de lavar, um nível de água sobe até um certo nível dentro da MOP, neste momento a polpa de papel é despejada; aos poucos, a água desce e deposita a polpa nas partes danificadas das folhas. Este processo é feito da primeira até a última folha ou documento, é um processo lento e extremamente cuidadoso. 

As folhas do livro são restauradas desta maneira, não se altera o conteúdo ou escrita da obra. A depender do estado de degradação das folhas, o processo pode durar de 1 mês e meio a 8 meses.

Trindade explica que a depender da obra ou livro, também o setor realiza a encadernação monástica, que é um tipo de substituição da capa verdadeira da obra. O setor de restauro não trabalha com restauro de capas originais dos livros. A encadernação monástica ajuda a conservar a obra pois é feita à mão, prolonga a durabilidade da obra em si e não utiliza nenhum tipo de cola, já que a mesma é ácida e contribui para danificar o livro.

"A encadernação monástica é feita com pergaminho, um material que leva em sua composição couro de ovinos e caprinos e se bem cuidada, pode durar uma eternidade. Por ser feito à mão, este tipo de encadernação pode ser refeita quantas vezes necessário, pois não prejudica as folhas da obra em si. Ela contempla principalmente as obras raras e contribui para conservar o livro por mais tempo. Inclusive, este tipo de encadernação é utilizada na preservação do acervo da Biblioteca Nacional”. 

Este setor também realiza restauro de obras de terceiros e de acervos outras instituições. O laboratório já restaurou livros do cartório do Tribunal de Justiça da Bahia.

Por motivos de segurança, os valores e orçamentos de restauro não puderam ser ditos e o registro fotográfico do laboratório, bem como seu maquinário e equipamentos não puderam realizados pela reportagem do Leiamais.ba. Para mais informações sobre este setor ligue para 2106-5277.

Curiosidades

A primeira bibliotecária negra do Mosteiro de São Bento

Letícia de Oliveira de Araújo é a segunda mulher a ocupar o cargo de bibliotecária do Mosteiro de São Bento da Bahia. Letícia também é a primeira mulher negra a ocupar tal posição. Um fato histórico. Graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal da Bahia e terminando a graduação em Arquivologia pela mesma universidade, Letícia é responsável pelo gerenciamento das bibliotecas de Obras Raras e do Acervo Corrente da biblioteca do mosteiro e da Biblioteca do Colégio São Bento.

É a primeira pessoa de uma família de nove irmãos a ingressar e se formar em uma universidade pública e federal. Entre os anos de 2011 e 2012, ela foi estagiária da Biblioteca do Mosteiro de São Bento, mas trabalhava no Acervo Corrente. Após conhecer o setor de Obras Raras e ser voluntária em sua catalogação, “se apaixonou” pela raridade e preciosidade deste acervo bibliotecário. Após o estágio, se enveredou na área de editoração de livros, a qual trabalhou durante um certo período. 

Em 2015, surgiu uma vaga para bibliotecária no mosteiro, uma professora do centro de pesquisa da biblioteca e da antiga Faculdade de São Bento já conhecia o seu trabalho e a chamou para uma entrevista em um processo seletivo e, até hoje, ela ocupa o cargo de bibliotecária da secular instituição.

Além de gerenciar as três bibliotecas, Letícia é a responsável pela supervisão das auxiliares de biblioteca e pelos estagiários de biblioteconomia nos afazeres de higienização e acondicionamento dos livros. Ela recebe grupos para visitas guiadas, realiza as atividades técnicas de catalogação, indexação e descrição das obras e também, dá continuidade ao inventário, recebendo as doações de livros e analisando estas obras. Para Letícia, a posição que ela ocupa hoje, é uma quebra de paradigmas.

"O racismo no Brasil é um problema social, estrutural e extremamente complexo. E, infelizmente, é algo que está longe de acabar. Nós, profissionais negros, precisamos sempre buscar uma especialização para adquirir conhecimento e estar capacitado para ocupar uma vaga no mercado. Ter gabarito faz toda a diferença. Fui a primeira da minha família a estudar em uma universidade pública, eu digo às minhas sobrinhas que sim, é possível, desconstruir conceitos arraigados e retrógrados. Eu me sinto feliz e muito privilegiada em trabalhar em uma instituição que possui mais de 430 anos de existência. É gratificante poder colaborar com o Mosteiro de São Bento e trabalhar em uma instituição que vive e respira história. Este lugar é responsável pelo desenvolvimento cultural e social da Bahia e do Brasil, é algo extrema importância e significado e isto não tem preço”. 

Biblioteca ainda guarda fichário do século 19

No final do século 19 e início do século 20, a Congregação dos Monges de Beuron, que é alemã, veio ao Brasil para restaurar a vida regular monástica dos mosteiros beneditinos do país.

Esta congregação foi a responsável por trazer um sistema de classificação de livros chamados de fichários - fichas bibliográficas por identificação de autor em ordem alfabética. As fichas bibliográficas são ainda guardadas em armários-gavetas. 

"Os monges de Beuron fizeram um catálogo manuscrito e o arranjo fixo para a classificação dos livros. Esse sistema de fichas identifica cada livro por assunto é um sistema manual, mas que funciona. Estas fichas estão preservadas até hoje na nossa biblioteca e fazem parte do nosso acervo, mas não são mais usadas”, diz Dom Sebastião.


As fichas estão preservadas e servem para ilustrar como os livros eram catalogados - Foto: Morgana Montalvão

O acervo é aberto ao público e as consultas e pesquisas são feitas na própria Biblioteca, sendo vetado o empréstimo de livros e periódicos, como também o acesso direto dos pesquisadores à área destinada ao acervo raro.

Os serviços oferecidos pela Biblioteca são: Orientação em pesquisa bibliográfica, treinamento de usuários para o uso do sistema, alerta bibliográfico, disseminação seletiva da informação, orientação na utilização dos multimeios, orientação na normatização de trabalhos científicos, controle do processo de reprografia de textos, pesquisa em outras bases de dados via Internet, empréstimo local.

A consulta ao acervo é realizada na própria sala de pesquisa da Biblioteca e o atendimento é feito de segunda a sexta das 8h30min às 12h e das 13h às 16h. Aos sábados das 8h30min às 12h (não há atendimento aos sábados). Não há mais empréstimos externo.

A biblioteca recebe teses e monografias, bem como receber doações de acervos particulares.O acervo da biblioteca pode ser visto em (http://bib.saobento.org.)

Para mais informações sobre a Biblioteca do Mosteiro de São Bento, ligue: (71) 2106-5208. E-mail: biblioteca@saobento.org