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Carlos Drummond de Andrade
Há uns dois anos, no meu aniversário, fui surpreendido ainda bem cedo, por minhas duas filhas entrando no quarto, cantando parabéns. Valentina já falava bem pros seus três anos, e Isadora, a caçula (um ano), tinha seu próprio dialeto. Valentina me entregou um presente embrulhado, com laços. Pulou na cama e me abraçou. Neste exato momento, uma outra surpresa, Isadora aparece logo atrás, correndo cambaleante, para me presentear com um limpa vidros e um terço. Exatamente o que escrevi: um limpa vidros (já pela metade) e um terço.
Recebi tais presentes com o mesmo carinho que recebi o embrulho com laços. E ganhei mais um abraço e beijos. A mãe deve ter pensado assim: "é tão bebê, deixa a irmã entregar, nem entende direito". Ou talvez nem tenha tido tempo de pensar. Mas Isadora deu um jeito de aparecer na "festa" com os presentes que conseguiu pegar o mais rápido possivel pela casa. E deixou bem claro que tinha dois presentes pro pai. Um em cada mão.
Todo mundo quer e precisa ser visto, notado, reconhecido. E não existe ninguém igual a outro neste mundo. Não apenas a sua digital do RG é única, você também é. Já parou pra pensar nisso com a devida atenção? Quando reflito sobre isso, percebo que esteja, talvez, diante da charada mais libertadora da nossa espécie.
Nunca existiu e nem nunca existirá ninguém igual a você no mundo. Então por que imitar alguém? Tentar imitar os trejeitos de um pierrô, ou andar como um cabide ambulante de passarela, sendo que o seu jeito de mancar no mundo é único. Pode até não ser o majestoso "andar" de um mangalarga marchador, mas é o seu caminhar.
Claro que necessitamos uns dos outros para sermos nós mesmos. São poucos os eremitas que vivem nas montanhas, né? Mas somos únicos. E quando descobrimos nossa singularidade, a coisa única, a coisa nossa, ímpar: um mar de possibilidades pode se abrir como o mar vermelho para Moisés. E não existe limitações. A não ser as que impomos a nós mesmos.
Então, a cegueira de um Jorge Luis Borges, me é luz, são dezenas de velas acesas no túnel mais escuro, em meio a um mundo em permanente guerra; assim como a surdez de um Beethoven, pra mim, é a mais completa perfeição; a asma de um mestre Suassuna é ar das montanhas dos Alpes, é velocidade, é ataque, é defesa, é ginga, é dança, é movimento certeiro: o cordão de ouro da capoeira. E viva mestre Bimba! Mas como? A resposta está justamente no "como".
"A mentalidade chinesa não dá ênfase a 'o que' e sim ao ''como'" (Chang Tung-Sung). Bem na minha cara. Minha filha de um ano de vida. Com o limpa vidros e o terço nas mãos. Mas poderia ter sido o pote de vidro de um molho de tomates ou a pilha descartável de um brinquedo. Ela só estava tentando dizer "feliz aniversário. Eu também existo, papai". E o fez lindamente sem o uso de palavras.
Por isso escrevi (outro dia) que a faxineira está salvando o meu mundo. E ela não é um Beethoven e nem um Borges e nem um romancista russo. E nem uma infuenciadora digital. Ela é ela. É o jeito que ela faz, que se relaciona com a toda a encrenca que nós criamos: que encanta.
Difícil é lapidar a palavra. Transportá-la para a página em branco, para a tela. Colocar o "sorriso" daquela senhora aqui. Impossível. Ter as cores de tinta necessárias no tinteiro; ter a força e ao mesmo tempo a destreza no punho para descrever o inexprimível. Aqueles "olhos expressivos". O desafio de desenhar aquela "risada banguela de criança". Minha filha.
Como é irreal, como é morto o livro, como é morta a palavra ao lado do ser vivo. Que ouve e sente e cheira e fala e chora e anda e ama e odeia e deseja e sonha e que quer voar e vibra. Mais fácil para um Deus ou um para um Gógol: "uma machadada; e saiu o nariz; outra; e resultaram os lábios; com dois movimentos de verruma grossa, fez os olhos, e soltou o resultado, sem lixá-lo, para o mundo, dizendo; 'Vive!'". E a vida acontece agora.
Tudo, tudo é passageiro. A chuva, o beijo, o milênio, a porta na cara, o dinossauro, aquele desentendimento besta, a tristeza, a era do gelo, o hit do verão. O não prestar atenção que é a grande doença, miséria. É o que fica marcado. Como estigmas, como pregos no aço, como eternas máculas na alma da gente... Como a personagem Úrsula, do "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez; cega, e ninguém, ninguém!! repara nela: "O ânimo do coração invencível orientava-a nas trevas. Os que repararam nos seus tropeções e depararam com o seu braço de Arcanjo sempre erguido à altura da cabeça pensaram que ela a duras penas aguentava o próprio corpo, mas ninguém achou que estivesse cega".
Gosto de olhar a vida através dos olhos brilhantes da minha filha - são como bolas de gude. E do olhar de todas as crianças do mundo. O olhar do outro melhora o meu. Isadora vai participar da festa. Ela é a própria festa. E desejo, do fundo do meu coração, ser sempre grato e digno por estar vivo, mesmo quando estiver ferrado, mesmo quando estiver me sentindo sujo por dentro, no espírito (lugar que sabão, detergente nenhum pode limpar; a limpeza é de outra natureza), mesmo quando estiver me sentido injustiçado ou com a cara na lona do ringue: ser grato a tudo e a todos; dar a devida atenção e carinho aos que passarem por mim; e homenagear, e prestar homenagens sinceras àqueles que amo enquanto estão vivos, e sempre, sempre retribuir ao menor sinal de afeto.
Afinal: "quem é que quer flores depois de morto: meu irmão, minha irmã? Ninguém".