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Acontece com todo mundo, com um pai também. Explico. Um amigo morreu. Havia sobrevivido a um acidente horrível de moto anos atrás. Mas não sobreviveu a um infarto. Ninguém vem com prazo de validade.
Ele tinha uma linda tatuagem de Cristo no ombro. Gigante, parecia até um destes quadros que a gente vê nas paredes das casas. Em destaque. Um rockeiro convicto! Piloto de motos grandes, potentes, das que voam por terra. O tipo de pessoa que abre o coração, olha nos olhos enquanto conversa com você.
E meu tio, muito doente, foi parar na UTI. E morreu hoje. Se eu for falar sobre o meu tio, sobre o que ele é para mim: vou fazer desta coluna uma Bíblia. Sabe aquele momento crucial da vida gente em que "uma palavra e tudo está salvo, uma palavra e tudo está perdido"? Pois é... Momentos que nos forjam o caráter? Ele fez parte disso. Nos instantes mais sombrios e tristes de minha vida: meu tio estava lá.
Ele estava muito doente. Mas não foi sempre assim. Foi o cara com mais saúde, em todos os sentidos, e presença de espírito, que tive a honra de conhecer. Escrevi sobre ele no meu livro "Fratura Exposta". Penso que escrevi pouco, nem o botão de uma camisa. Nada comparável ao que ele realmente foi em vida, ou o que representou pra mim.
Quando criança, pensava que meu tio era uma espécie de super-herói. Um imortal. Foi ele que me mostrou o disco do Lou Reed quando eu tinha 10 anos. Ele me aplicou no solo sagrado do Rock N Roll. Ficava horas ouvindo na vitrola da sua casa: Stones, Led, Raul, Dire Straits, Santana, Doors, etc, etc... E também no seu carro. Quando o tempo fechava lá em casa, ele sempre me resgatava. Com um sorriso largo.
Devo muito a ele. Quando penso nele: vejo seu olhar de ternura, cumplicidade e compaixão pousando sobre mim. Não consigo, neste momento, ou em nenhum outro, me enclausurar nas perpétuas grades de um Instagram. Neste momento o meu coração sangra com a perda do meu tio. Sei que ele estava sofrendo muito, mas sentimento nunca foi um bom assunto, né? Já tinha escrito a crônica da semana. Mas não contava com isso.
E quem conta com a morte ou a fome ou com as injustiças do mundo? Minha filha de cinco anos olha uma criança de rua e pergunta se eu posso levá-la para morar com a gente porque cabe em casa. "Cabe em casa, papai" - ela insiste. E eu não sei o que dizer. Minha filha tem razão, por isso fico sem palavras. É uma criança linda, abandonada. E são dezenas, centenas, milhares delas. O mundo são delas e elas estão a mendigar, sendo tratadas como lixo, como nada. Se alguém tenta, de fato, fazer alguma coisa por aqui, tratam logo de pendurá-lo numa cruz. E a vida tem pressa. O bem tem pressa porque o mal tem atravessado paredes.
Fui buscar minhas filhas na escola, como sempre faço, e elas vieram de patinete, e eu correndo do lado, com medo, mas me divertindo também, tentando proteger a todo custo, que nem um pateta. Paramos para tomar sorvetes. Elas aceleravam pela calçada e quando eu dizia "pára", elas paravam. E riam. E as pessoas que passavam perto da gente riam também. E foi assim nossa jornada até chegar em casa.
Coloquei uma música, Dire Straits - Alchemy (aumentei o volume) e elas dançaram na sala. Uma das visões mais lindas que presenciei na vida. Isadora tentou imitar Valentina, desequilibrou-se, rodopiou e caiu. Bateu o queixo no chão. Entrei em pânico. Mandei mensagem pra Ju. Coloquei gelo. Assoprei... Peguei minha filha no colo, contei histórias, li histórias de livros infantis, coloquei um filme da Dora Aventureira, do Go Diego Go, Toy Story 1, 2 e 3.
Valentina disse: "Só brinca com ela, papai, aí ela pára". Foi o que fiz. E deu certo. É preciso escutar. É preciso olhar quem está na nossa frente. Não pra nossa própria cara no espelho do banheiro, treinando pose pro palco 24 horas da vida. Ou se cegar com o próprio umbigo da vaidade. Mas gestos.
Meu tio estava lá. Ele me escutou. Principalmente aquilo que eu não conseguia dizer em palavras. E por isso me salvou. (Um dia eu conto). E por isso pude encontrar alegria genuína e sentido em lugares que eu nem sabia que existiam, de tão simples que eram e que são. E que pertencem a todos nós.