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Estava lendo "Sonata a Kreutzer", já pelo final do livro, absorto, mergulhado naquela tragédia, enfeitiçado pela maneira com que Tolstoi narra a trama, talvez o único livro em que o romancista russo solte tanto suas amarras, não faça uso do freio de mão, coloque a bílis e o coração bem juntos, num mesmo emaranhado, surgindo daí um espetáculo de imagens, sons, cores, sentimentos, assassinato, sangue, paixão, confissão - tudo isso num só fôlego, dentro de um contexto histórico e espaço peculiares (um trem): quando sou surpreendido com um carinho na cabeça.
Um cafuné. Mãos pequenas e delicadas. Minha filha Valentina me trazendo de volta ao mundo. Mas não a qualquer mundo. "Papai, você pode ser o lobo?", indaga Isadora.
E um novo mundo em breve será criado. Um mundo em que é permitido ser alegre sem saber o motivo. Seguindo o fluxo da vida. Da vida! Até porque a morte não melhora ninguém. Não como o covarde que aparece nas páginas de Henry Miller, que fecha os olhos para a vida, que a despreza, que a denigre.
E faço aqui um parêntese grandão... Saindo do trabalho, deparo-me com a faxineira. É uma senhora que tem os olhos mais expressivos que vi, e tem sempre um sorriso bonito no rosto. Faz com tanta entrega e carinho o seu trabalho que quando a vejo, penso logo numa grande artista. Aquela mulher está salvando o meu mundo.
E penso no meu mundo, sinto vergonha de apresentá-lo para minhas filhas. De contar como foi minha volta pra casa do trabalho. O que vi no meu mundo. Mas uma imagem não quer me abandonar... No metrô, lendo "O Enforcado" (Simenon), vejo uma velha, negra, linda, linda!!, que me lembra meus ancestrais - eles berram dentro da gente, não é?, sinto um nó no estômago, sinto vergonha, ela tem cabelos brancos (como algodão doce), ninguém repara nela, ninguém, nem as moscas. Como se aquela mulher não existisse. Como se aquela mulher tivesse despencado do meu livro, a cabeça pende para a frente, só falta o urubu bicar a velha: ela é a enforcada do Simenon...
Mas ela é real. Fecho o livro. Ninguém cede, a jovem pega o lugar da idosa, a velha não repara quando chego até ela e ofereço o meu lugar, mas aceita - de seus olhos caem pedaços de pele -, parece um estágio avançado de catarata, ou alguma doença. Ajudo a velha a se sentar. Pessoas riem alto, o policial fica olhando pro relógio de pulso, coça o saco, tira a cueca do meio da bunda, os olhos são vazios. De peixe.
O mundo de minhas filhas é diferente. É um mundo em que cabe todo mundo. Até cem elefantes num pequeno quarto... O castelo de lego é montado e se o vento bater, ou se alguém por descuido o derrubar, o riso toma conta da brincadeira. Começa-se tudo de novo, peça por peça. E será um novo castelo. E o lobo não é o "Lobo de Estepe". Apesar de possuir algumas características deste. Mas um lobo sem nome. Que pode virar outro bicho. Ou possuir asas. Soltar fogo pela boca como dragão. Ou carregar crianças nas costas. E voltar a ser pai. E ajudar a fazer a lição da escola. Ou a dar banho. Um pai que carrega no peito o tormento de fazer parte do mundo dos adultos.
Espero, no fundo de minha alma, ser digno de tal tormento - como escreveu o outro. Aqui não. Neste mundo em que estou prestes a entrar: não existe assassinato, tormento, conchavo politico, desvio de dinheiro público, empreiteiras suspeitas. Não! Pulo da poltrona e me preparo para perseguir minhas pequenas presas. Em breve, eu, o lobo sem nome, serei amarrado e alimentado e penteado por mãos pequenas.