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O choro de dor me acordou logo cedo. Não era um choro manhoso. A gente começa a perceber a diferença com o tempo. Não precisa ser nenhum especialista. Ou ter um ouvido absoluto, de maestro - orelhas de Karajan. Basta escutar com um mínimo de atenção.
A mãe já estava a postos. Mãe é mãe, né? Uma vez li em algum lugar, não me lembro se foi num dos romances do Dostoiévski ou do Fante ou do Victor Hugo ou se ouvi da boca de uma personagem da Netflix: que nossas digitais são forjadas no útero materno. Nas fricções que fazemos com as mãos, os dedos, dentro da barriga da nossa mãe. Como se nossa identidade fosse criada antes de nascermos. Tá tudo lá. Isso deve dizer alguma coisa, não? A gênese, o cordão umbilical se estendendo numa ligação que nunca se rompe... O feto, o bebê ainda não nascido, tecendo o seu destino nas entranhas da mãe.
Mas uma armadilha, eu estava sendo atropelado por pensamentos do tipo: "Poxa, e o Show de Rock da banda dos meus amigos?", "Eu ainda ia subir no palco, "baixar o santo", e cantar uma canção com eles e a gente ia se divertir como sempre faz", "Justo hoje que ia com a Ju (minha esposa)?", "E a minha cerveja gelada?".
Me senti mesquinho, pequeno. Menor do que já sou. Vergonha de todas as vezes que julguei meus pais tão severamente. Ou qualquer outro ser humano. E me lembrei dos meus amigos. Velhos de guerra. Que são como as estrelas, mesmo quando não as vemos, sabemos, no fundo de nossa alma, que elas estão lá. E isso nos dá forças para enfrentar qualquer parada. Alguns dos meus amigos são leais como cães. E me senti abençoado e orgulhoso. Eles sempre estão de ombros comigo, e eu com eles. E sinto que vai ser assim até o fim.
Minha filha precisava do pai, como se fazer de morto numa circunstância como esta? Quem é capaz de se fazer? Tem gente que dá uma terceirizada na filha doente? Tem isso? Deixei que estes pensamentos morressem de morte natural. Acho que eles morreram, ou desmaiaram, infartaram, ou se calaram. Não os vi mais. Só uma imagem ficou em minha cabeça: o desenho que minha filha havia feito pra mim. No desenho que ela me retratou, eu estava fazendo muque com os dois braços, tinha o coração grande, e a cabeça também. Numa folha de caderno. Assinado por ela. E ela ainda nem foi alfabetizada. Um presente que recebi dias antes.
Aquilo tocou o mais profundo do meu ser. A sensibilidade de uma criança: a minha responsabilidade. Levantei minha carcaça dona da verdade da cama e fui ajudar. Pacotinho (que é como a gente chama carinhosamente nossa filha Valentina) olhou bem dentro dos meus olhos. Foi aí que eu quis que ela soubesse, sentisse de verdade, que estamos juntos nessa, mesmo sem ter que dizer nada, sem precisar usar palavra alguma. Aquilo que Mário de Andrade escreveu no conto "Vestida de Preto": - Uma ternura imensa, firme e reconhecida, não exigindo.
No hospital, o diagnóstico: infecção urinária. Colheram urina por sonda. Espetaram seus bracinhos com agulhas. Ela, tão pequena, chora de dor, medo. O corpo franzino treme. Quer o pai. Reprimo algumas lágrimas rebeldes que teimam em sair de meus olhos. Eu estou aqui, filha. Eu não quero estar em nenhum outro lugar.