É o que mostra o estudo “Tirando o Véu”, lançado pela Plan International Brasil, em São Paulo, e que aprofunda o entendimento sobre o casamento infantil no país.
A Plan International é uma organização humanitária, não-governamental e sem fins lucrativos que promove os direitos das crianças e a igualdade para as meninas.
Toda união, formal ou informal, em que pelo menos uma das pessoas tem menos de 18 anos é considerada um casamento infantil. O Brasil ocupa a alarmante quarta posição no ranking mundial de casamento infantil de meninas em números absolutos, com 2,9 milhões de uniões precoces no total. Está atrás de Índia, Bangladesh e Nigéria.
Estima-se que 7,5 milhões de meninas se casem precocemente todos os anos no mundo. O Brasil, infelizmente, também está entre os cinco países da América Latina e Caribe com a maior incidência de casos. Uma a cada quatro meninas na região se casa antes dos 18 anos.
Para entender melhor as causas e as principais consequências dos casamentos infantis, o estudo “Tirando o Véu”, realizado em parceria com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), conduziu uma investigação quantitativa nacional, para recolhimento de dados estatísticos, e uma investigação qualitativa local, com grupos focais na Bahia (Salvador, Camaçari e Mata de São João) e no Maranhão (Codó).
Foram conversas com meninas casadas e não casadas abaixo de 18 anos, mulheres de 18 a 25 anos que se casaram adolescentes, meninos não casados, maridos que se casaram com adolescentes e famílias/responsáveis.
O estudo também entrevistou líderes comunitários e religiosos, além de agentes públicos, especialistas e organizações da sociedade civil. A pluralidade dos grupos entrevistados é um dos diferenciais do estudo.
“A pesquisa compara as pessoas casadas e não casadas, traz uma visão daquelas que estão em casamentos recentes e aquelas que já se casaram há algum tempo. Ganhamos na capacidade de análise das causas ao escutar também os meninos que não estão casados e os homens que se casaram com meninas”, afirma Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da Plan International Brasil.
De forma geral, pode-se afirmar que as meninas se casam com homens mais velhos, com maior instrução formal e melhores perspectivas econômicas, o que as coloca em posição de desigualdade, sujeitas a violências de gênero.
As funções conjugais exercidas pelo casal são marcantes e simbólicas: o homem em posição de provedor, responsável por trabalhar e levar dinheiro e proteção à família, e a mulher no papel de cuidadora da casa e dos filhos.
“O casamento infantil é prematuro, pois o início da vida conjugal é problemático para as meninas e adolescentes e concorre com outros direitos, como a educação. É também forçado, pois ressalta as desigualdades estruturais que propiciam essa realidade para meninas no mundo todo, estando bem longe de ser uma escolha, ao levarmos em conta as baixas perspectivas que elas têm”, afirma Cynthia Betti, diretora-executiva da Plan International Brasil.
Principais causas e consequências
As conversas nos grupos focais contribuíram para ressaltar como o casamento infantil é um fenômeno multicausal, que precisa de uma leitura abrangente e complexa para ser compreendido. Nas cidades baianas da amostra pesquisada, os casamentos e as uniões foram motivados por quatro causas principais: gravidez, perda da virgindade, saída de lares conflituosos e desejo/amor.
Já na maranhense Codó, as motivações foram mais diversas, incluindo, além das causas já citadas, o desejo pela maternidade, a proteção contra a violência e a sanção da comunidade. Outra causa frequente relatada por entrevistados especialistas nacionais foi a vulnerabilidade socioeconômica das meninas, menos citada nos grupos focais, mas também importante nesse fenômeno.
As questões envolvendo a vivência da sexualidade são as mais frequentes entre as causas nos grupos focais da pesquisa. Meninas e meninos querem começar a vida sexual, mas esbarram em pontos como a falta de informação sobre sexualidade, como evitar uma gravidez não desejada e ainda no julgamento de suas comunidades - com papéis de destaque para a sanção moral familiar e religiosa de que as meninas só poderiam deixar de ser virgens ao se casar, por exemplo.
Essa pressão social antecipa os casamentos. Por isso, grande parte das uniões formais ou informais acontecem depois de um período curto de relacionamento amoroso - de um mês a um ano. Entre os participantes do estudo, apenas um casal namorava havia quatro anos quando se casou. Em geral, as meninas têm suas primeiras relações afetivo-sexuais com os futuros maridos ou companheiros.
“Acreditamos que as questões mais evidenciadas no estudo - gênero e sexualidade - parecem abranger diferentes públicos e contextos, sendo difícil delimitar um grupo ou local. Por outro lado, é possível que haja pontos de concentração, a depender das características sociais, econômicas e culturais de determinados locais e grupos sociais e do nível de investimento público (ou a ausência dele) ali realizados”, afirma Daniella Rocha Magalhães, coordenadora técnica da pesquisa.
Segundo ela, agentes públicos de Codó, no Maranhão, apontaram que pode haver maior incidência de casamentos infantis em comunidades rurais e tradicionais, como as quilombolas, na cidade.
As consequências mais diretas do casamento infantil são a gravidez precoce, o abandono escolar e a perpetuação do ciclo de dominação e reprodução das desigualdades de gênero.
As meninas sofrem com a intensificação do trabalho doméstico e com a entrada precária ou tardia no mercado de trabalho - já que a falta de profissionalização geralmente impede essa chegada ao mercado formal.
Outras consequências são a violência doméstica, o despreparo emocional e psíquico, a limitação dos projetos de vida, a perda de liberdade e mobilidade.
O atraso e o abandono escolar foram superiores na amostra da pesquisa no Maranhão, tanto para meninas e mulheres quanto para homens casados. Das sete meninas casadas entrevistadas em Codó, apenas uma continuava estudando. Em alguns casos, a evasão escolar ocorreu até antes do casamento e não como consequência dele.
A combinação de gravidez, casamento/união forçada e serviço doméstico acaba sendo um motivador para a baixa escolaridade das meninas e mulheres da pesquisa.
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Um casamento de conto de fadas, exceto por um detalhe
Números na AL e Caribe não caem
A América Latina e o Caribe é a única região do mundo onde a prevalência do casamento infantil e da união precoce não diminuiu na última década, disse o escritório regional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) para a América Latina e o Caribe.
Os níveis de casamento infantil na região permaneceram em torno de 25% na última década, enquanto outras áreas do mundo registraram declínios significativos, principalmente no sul da Ásia, onde os níveis de casamento infantil caíram de quase 50% para 30% na última década.
Na região, o casamento prematuro entre as meninas indígenas, as meninas que vivem em áreas rurais e os grupos populacionais de média e baixa renda parecem ser mais recorrentes do que os das áreas urbanas e dos segmentos de alta renda. Na região, as uniões precoces não matrimoniais são mais frequentes do que o casamento formal e legal.
“O que estamos vendo em outras partes do mundo é um progresso real para proteger as meninas do casamento infantil, e isso é motivo de comemoração. No entanto, este não é o caso em nossa região, onde uma em cada quatro mulheres era casada ou estava em uma união pré-casamento antes dos 18 anos de idade”, disse Maria Cristina Perceval, diretora regional do UNICEF para a América Latina e o Caribe.
“As meninas que são forçadas a casar ou entrar em união antes de completar 18 anos são privadas de oportunidades imediatas e de longo prazo que, em última instância, afetam o cumprimento de seus direitos. O aumento do risco de violência sexual, maternidade precoce, abandono escolar – além da exclusão social de seus pares – é um claro indicador de que as meninas da região estão sendo, e continuarão a ser, deixadas para trás se não agirmos agora.
Se as tendências atuais continuarem, quase 20 milhões de meninas na América Latina e no Caribe se casarão na infância até 2030.
Uma das principais razões para que o casamento infantil e a união precoce na região não diminuíssem está relacionada às taxas de gravidez adolescente igualmente altas – segunda no mundo – e ao risco de violência sexual para meninas – 1,1 milhão de adolescentes relatam ter sofrido abuso sexual. Esses fatores combinados de desigualdade de gênero para meninas na América Latina e Caribe impedem suas opções e oportunidades.
A pobreza também contribui para o casamento infantil e para as uniões precoces que, combinadas com normas, papéis e relações de gênero, influenciam as crenças e decisões de que a união precoce é aceitável, e até mesmo desejável, como uma opção de vida.
Além disso, as lacunas na legislação nacional podem permitir o casamento antes dos 18 anos ou incluir exceções para permitir o consentimento dos pais, representante legal ou autoridade judicial.
“A igualdade das meninas é restrita na região por meio de impactos combinados de maternidade e uniões precoces, violência e oportunidades de vida limitadas. Não podemos mais manter os olhos fechados para seus direitos perdidos e potenciais. É por isso que, junto às nossas agências irmãs UNFPA e ONU Mulheres, lançamos um programa regional, solicitando urgentemente o fim dessas práticas na região. Convidamos outros parceiros a participar desta causa”, concluiu Perceval.
Refugiada de 12 anos é forçada a se casar
Sentada numa tenda do campo de refugiados de Mbera, na Mauritânia, a jovem Fatimata, de 12 anos, desenha uma flor em seu caderno escolar. Atrás dela estão empilhados os colchões e cobertores que seriam seu dote, se ela não tivesse resistido à tentativa da família de casá-la à força com um primo, pastor de gado em sua terra natal, o Mali.
“Foi só no dia em que meu tio do Mali veio para cá que entendi que meus pais tinham arranjado um casamento para mim”, conta a menina. “Ninguém me perguntou se eu queria me casar. Eu estava com tanto medo que fugi.”
“Agora eu sei que eles estavam falando sobre isso há muito tempo”, acrescenta Fatimata, que diz ainda não conhecer o parente com quem queriam casá-la. “Mas sei que ele é muito mais velho que eu.”
Na tenda de seus pais, Fatimata escreve e desenha em seus cadernos da escola. Atrás dela, empilhados, estão os colchões e cobertores que serviriam como seu dote. Foto: ACNUR/Helena Pes
O campo de refugiados é a casa de Fatimata desde os seis anos de idade. O assentamento está localizado numa região árida do sudeste da Mauritânia, perto da fronteira com o território malês. Após a onda de violência que começou no norte do Mali em 2012, Mbera se tornou o lar temporário para mais de 56 mil refugiados. Entre a população deslocada, existem muitos pastores árabes e tuaregues que perderam seus meios de subsistência no conflito.
Como a falta de segurança perdura no Mali, novos fluxos migratórios para a Mauritânia são comuns. Desde janeiro de 2018, mais de 4,7 mil pessoas foram registradas em Mbera. Os refugiados trazem relatos de ameaças, extorsão e execuções por grupos armados. Também falam sobre condições de vida exaustivas nos lugares onde moravam.
A pobreza e a vulnerabilidade dentro do acampamento contribuíram para a realização de casamentos precoces e forçados. Em 2017, 97 casos foram registrados pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR). No entanto, o número real é provavelmente muito maior. O organismo das Nações Unidas, em parceria com o Fundo da ONU para a Infância (UNICEF) e a ONG italiana Intersos, criou uma rede de segurança para proteger as crianças que moram no campo.
Pouco depois de fugir da família, Fatimata foi encontrada e levada de volta para a tenda dos pais. “Meu tio me amarrou com uma corda para ter certeza de que eu não escaparia novamente, mas consegui me libertar e fugir mais uma vez para a casa da minha prima, do outro lado do campo”, lembra a jovem. A menina esperou amanhecer antes de ir à escola mais próxima e procurar ajuda.
“Quando encontrei Fatimata, ela estava angustiada e com contusões nos braços e no pescoço por causa da corda”, afirma a também refugiada Halima Sidiwa, indicada pela Intersos como ponto focal da comunidade para crianças em risco. A voluntária oferece um lugar seguro para meninas.
Fatimata passou cinco dias na casa de Halima, recusando-se a voltar para os pais até o tio ir embora. “Ela estava apavorada e chorava porque queria voltar para a escola”, explica a assistente sênior de Proteção do ACNUR, Houleymata Diawara. A especialista e outros profissionais de assistência discutiram o episódio com líderes comunitários antes de se encontrar com a família da menina.
As conversas com os parentes não foram fáceis, mas a mãe de Fatimata, Walet, estava entre os que eram contrários ao matrimônio. “Eu não estava feliz com a ideia de dar a minha filha em uma idade tão jovem e expressei minha tristeza, mas eles não me ouviram”, lamenta.
“Quando meu pai ouviu o que estava acontecendo, ele me avisou para não me meter entre meu marido e seu irmão mais velho e deixá-los fazer o que deviam”, completa a mãe. “Em nossa cultura, o irmão mais novo deve respeitar as decisões tomadas por um irmão mais velho. Ele já havia decidido que iria levar minha filha, então eu não fiz nada.”
Após um longo processo, a equipe de proteção e outros moradores de Mbera conseguiram persuadir a família a cancelar a união e permitir que Fatimata continuasse estudando. “Agora que o casamento foi cancelado, eu não tenho mais medo”, diz Fatimata, alegre. “Ouvi dizer que encontraram outra esposa para o meu primo e estou feliz de poder ir à escola.”
O representante do ACNUR na Mauritânia, Nabil Othman, disse que a agência e seus parceiros continuarão se envolvendo com as comunidades para aumentar a conscientização sobre o assunto e tentar prevenir novas ocorrências.
Além da proteção social para crianças, “a documentação também é uma ferramenta de proteção infantil muito importante, que nos permite intervir em casos de casamentos precoces e forçados”, explica Othman.
Recentemente, a Mauritânia começou a distribuir certidões de nascimento para todos os refugiados maleses nascidos no campo de Mbera. A data de nascença desempenha um papel fundamental na proteção dos menores de idade, permitindo que as autoridades identifiquem casos de matrimônio infantil e outras formas de abuso, antes de recolher provas contra os agressores.