Bahia

Saiba como começou a festa junina e por que se acende uma fogueira

A celebração foi trazida pelos jesuítas no Século XVI

Foto: Kithi
A celebração trazida pelos jesuítas ganhou aceitação imediata por causa das fogueiras
A celebração trazida pelos jesuítas ganhou aceitação imediata por causa das fogueiras

São João é tempo de deixar a capital, viajar para o interior, rever a família, tomar licor, comer canjica, pular fogueira, tocar sanfona, dançar o arrasta pé.... É tempo da tradição que vem dos territórios além-mar. Costume que se transformou na maior festa rural do estado.

O São João, originalmente uma tradição religiosa realizada pela igreja católica para agradecer as boas novas trazidas por São João Batista era também um momento de festejar a fartura da colheita pelas comunidades da zona rural. O São João tem como princípio a abundância de alimentos, de bebidas, de músicas, de danças, de enfeites coloridos...

A celebração que foi trazida pelos jesuítas no Século XVI e ganhou aceitação imediata por causa das fogueiras e fogos de artifícios, conforme afirma a antropóloga Luciana Chianca, é também uma ressignificação dos cultos politeístas europeus pelos católicos.

Os festivais que reverenciavam as divindades da fertilidade nas zonas rurais durante a Idade Antiga foram adaptados e designados a São João Batista durante a cristianização do Império Romano.

A fogueira, um elemento marcante da festa, é também simbolicamente importante para os indígenas e para os afrodescendentes que tem como prática o agradecimento e a reverência aos elementos da natureza do qual é constituído o planeta. O fogo faz parte das cerimônias indígenas de transformação e da tradição de Xangô, o Senhor da Justiça.

O historiador Wander de Lara Proença fala da utilização do fogo pelos africanos em solo brasileiro como sendo “parte do culto aos ancestrais que representava a continuidade da linhagem implicando também na proteção propiciada pelo ancestral”. O fogo nunca se apagava dentro das senzalas mesmo em dias quentes.

 
Na choça do cativo ardia um fogo, que era mantido permanentemente aceso mesmo nos dias mais quentes
-- (Robert Walsh, 1840)

Para os índios o fogo é um dos quatros elementos que regem a natureza e estão presentes em seis formas: o fogo que queima a madeira, o fogo do interior da Mãe Terra, o fogo em larva que forma o povo de pedra, o fogo que vem do raio, o fogo no Avô Sol e o fogo sagrado que reside dentro de cada um de nós e que alimenta a nossa paixão pela vida. Todos são reverenciados no ambiente do xamanismo.


Fogueira na madrugada - Foto: Kithi

A celebração da fertilidade

Das tradições católicas até as tradições indígenas, passando pelas tradições do hemisfério norte; pelos almanaques, literatura presente no início do século XX; pelas cantigas de Luiz Gonzaga, o rei do baião, uma das maiores referências da musicalidade junina; e pela dança sensual com forte influência africana, a fertilidade e a paixão são elementos ligados aos festejos que tem o fogo como elemento simbólico do ritual.

As festas de junho, Santo Antônio, São João e São Pedro, onde o fogo está presente, sendo a fogueira de São João a mais expressiva representação, reúne as várias etnias existentes no mundo em um diálogo invisível de tradições milenares: o culto ao fogo é também um culto a paixão e a fertilidade exposta pelos mais diferentes povos que se encontraram através do tempo.

Para as pessoas da Idade Antiga que habitavam o hemisfério norte do planeta, de onde o São João sofre influências, o culto aos deuses era um movimento usual. Sendo a agricultura uma prática diretamente ligada a fertilidade, os povos celebravam a respectiva Divindade de suas tradições no solstício de verão, 24 de junho, data em que a noite era mais longa e se anunciava as “boas novas” com o renascimento da natureza vegetal, adormecida durante o inverno. As fogueiras nesse período tinham a função de afastar as pragas e os maus espíritos.


São João na cidade de Cachoeira - Foto: Kithi

Santo Antônio, o santo casamenteiro dos católicos, é solicitado por todos para realizar o desejo de encontrar o par amoroso dos sonhos e ai dele que não realize os pedidos, o castigo é certo: é colocado de cabeça para baixo, é deixado no congelador, é amarrado e só Deus sabe mais o que é feito com a imagem desse santo católico.

Na poesia, nos ditados, na prosa e nos textos dos almanaques estão presente o amor entre os casais, sejam nas adivinhações para o encontro amoroso, seja nos contos, seja nos signos ou seja na importância de se cultuar a tradição do encontro e a união da família, compartilhando com os vizinhos e amigos as comemorações do mês de junho.

Esses escritos revelam a vida cotidiana acompanhada pelo fogo que simboliza a fecundidade, a fertilidade e a prosperidade das lavoras, ao mesmo tempo, que embala o ritmo das paixões proporcionada pelo fogo sagrado existente em cada ser humano.

A presença do fogo como símbolo presente nos caminhos da fertilidade que provoca e anuncia o surgimento de uma nova vida pode ser visto nos diversos elementos que compõe o cenário simbólico da tradição, desde a fogueira acesa por Isabel para comunicar o nascimento de João Batista a Maria, mãe de Jesus; até a música que entoa o fogo interno que proporciona o namoro e o surgimento de um novo ser humano.

O canto de Luís Gonzaga, o rei do baião, gênero de música e dança da cultura popular tradicional do período junino do Nordeste, tem a forte presença da mulher que desperta a sensualidade e alimenta o fogo dos amantes,.

Veja a poesia da música "Vem Morena" 

Vem, morena, pros meus braços
Vem, morena, vem dançar
Quero ver tu requebrando
Quero ver tu requebrar
Quero ver tu remexendo
Resfulego da sanfona
Inté o sol raiar
Esse teu fungado quente
Bem no pé do meu pescoço
Arrepia o corpo da gente
Faz o véio ficar moço
E o coração de repente
Bota o sangue em arvoroço

Ouça Luiz Gonzaga cantando "Vem Morena"

Da celebração litúrgica ao espetáculo

A festa de São João trazida pelos europeus como parte da sua religiosidade aproximou os colonizadores dos índios, visto que os nativos brasileiros encontraram suas referências identitárias na fogueira, na música, na forma de expressão da celebração.  

Com o passar dos anos o festejo que ganhava iluminação e pétalas de rosas nas ruas das cidades coloniais era um pretexto para o sorvete, para o encontro, para a alegria de ver e ser visto. A igreja vendo o distanciamento da fé cristã pelos participantes passou a vigiar e exigir, através de regras, em concordância com o Rei e com a polícia, padrões de comportamentos que fossem adequados a religião, chegando a proibir a fogueira e os fogos de artifícios em 1641. Lei que foi revogada em 1869 por duas cartas Régias.

 
A Igreja encontrou então essa dificuldade fundamental: dissociar o fogo – característica pagã essencial da festa – do simbolismo do fogo carnal e sensual. Julgadas excessivamente licenciosas, todas as práticas populares que não se inscreviam na doutrina cristã foram chamadas “profanas” e convidadas a desaparecer (Luciana Chianca)

O tempo passa e o povo continuava a querer desfrutar do encontro proporcionado no ambiente festivo. As ruas eram ocupadas e as pessoas se reuniam para celebrar a colheita através do culto ao santo católico. A contenção da magia da vida era impossível nesse novo mundo de tantas referências culturais.

Com a chegada da Família Real em 1808 as festas começam a tomar outro rumo com a introdução de músicas, de danças de salão e dos fogos de artifícios chineses apresentados no Rio de Janeiro.

No século XX o culto sai do lugar tradicional e ganha as ruas com as procissões. Santo Antônio começa a ser visto como o “santo casamenteiro”. O tríduo a São João foi instituído, bandeiras com imagem do santo eram levantadas e a festa cada vez mais entrava no espaço do lúdico.

Na década de 40 a relação da imprensa com o clero praticamente desaparece, a notoriedade das festividades começou a cair e um novo padrão foi adotado definitivamente até a década de 80: missas sequenciadas de procissão e quermesse.

Paralelo a igreja o povo continuava a fazer a festa como desejava. A igreja católica já não conseguia interferir. No interior do estado o mesmo acontecia. As famílias começaram a produzir as próprias celebrações e a construir um universo de simbolismo e significados que orientavam as obrigações para com Santo Antônio, São João e São Pedro, dentre elas ascender a fogueira nas suas portas.   

A ligação com a igreja foi mantida pelos cristões e o aspecto religioso pode resistir graças as adaptações realizadas pelo clérigo as práticas da população.

Na década de 90 com o advento do turismo de forma mais presente fez com que o governo local passasse a interferir e ajudar na organização e realização das festas populares, abrindo espaço para os patrocinadores privados adentrarem todos os espaços de tradições populares, inclusive o São João.

E a transformação foi acontecendo e o festejo foi convertido em espetáculo que movimenta turisticamente as cidades do interior. Pouco se fala na celebração e agradecimento a colheita, mas a festa ainda é uma ocasião para que as pessoas que moram na cidade grande retornem as suas localidades de origem e se reúnam com seus familiares. Aliás, a família é a base e a garantia da perpetuação da festa na zona rural.

O São João ganha tamanha importância na referência de pertencimento da população baiana que alguns trabalhadores preferem perder o emprego a deixar de comparecer ao evento.

Na Bahia o São João é encontrado, com menor ou maior expressividade, em quase todas as cidades do interior e também na capital, que tem no Pelourinho, o local escolhido para mostrar “um pouco” do costume.

Nesse universo de tradições emaranhadas pelos processos históricos da luta pelo poder, através da conquista de novos territórios e novos fiéis religiosos, só é possível afirmar que a cultura brasileira é marcada pela mistura de elementos de várias tradições. Desse aparato sabe-se muito pouco. Onde começa e onde termina a influência de cada povo é missão quase impossível, inclusive por conta do ângulo que a história foi escrita e ainda é contada.

Lembranças de junho, quando era menina e morava em Muritiba

Quando chegava o mês de junho a euforia tomava conta de todos nós, crianças e adolescentes, que vivíamos em Muritiba. Entre a década de 70 e 80 o São João tinha um referencial sagrado para nós: era o momento de agradecermos a fartura que aqui, no hemisfério sul temos o ano inteiro. No inverno o milho, o amendoim, as raízes, no verão os frutos.

O São João começava bem antes do dia 23 de junho, a véspera da data festiva e o melhor dia da brincadeira. As preparações antecediam as trezenas de Santo Antônio, rezada na Casa da minha avó Carmem, que atendia aos vizinhos da rua. A casa tinha que estar arrumada e enfeitada para receber aquela quantidade de pessoas que vinham orar conosco. E o quarto de oração quase não cabia a todos.


Rua da cidade de Igatu enfeitada para o São João - Foto: Kithi

As bandeirolas eram enfeite imprescindível, naquela época não encontrávamos feitas de fábrica. Tínhamos de comprar o papel de seda colorido, cortar no molde quase que perfeito, esticar o cordão de uma ponta a outra da varanda e com cola feita de farinha de trigo ir pregando uma-a-uma.

Fazíamos isto na casa de tia Miralva que ficava junto da casa de vovô Fábio num sítio enorme dentro da cidade. Eram duas casas para serem enfeitadas e uma boa quantidade de bandeirolas tinha que ser produzida. Mas não cansávamos, pelo contrário, era uma diversão.

Além das bandeirolas, arranjos de flores de papel eram utilizados para enfeitar a casa e o altar. No São João eles não eram tão expressivos. No seu lugar, no centro da mesa das iguarias, era construída uma fogueira feita de pedaços de cana-de-açúcar com as pontas embaladas com papel crepom vermelho, cortado em tiras, simulando o fogo.

Para fazer tantas coisas era um mutirão que contava com a família e os vizinhos. Nós, as crianças e adolescentes, éramos envolvidos na produção da festa. Adorávamos! A construção de todas as partes que compunha o cenário, era uma diversão a parte. Em tudo tinha muita alegria.

Para o último dia da reza de Santo Antônio a fartura estava posta na mesa, na quantidade de fogos e no gigantismo da fogueira. Durante os cânticos era de praxe desaparecermos para brincar e vovô Fábio a nos catar gritava pela casa: “vai rezar”. Ele era responsável pela produção da brasa que servia para queimar o incenso.

Passava o Santo Antônio e as preparações continuavam para o São João.

Tio Edison fazia os balões. Naquele tempo era permitido. Ele cortava o papel de seda, colava, fazia o aramado para sustentar a bucha. A bucha era feita de estopa e era encharcada de querosene na hora de atear fogo para o balão subir.

Os balões de tio Edison eram perfeitos, raramente algum queimava ou não subia. Era preciso maestria para fazer. Eu nunca acertei. Mas adorava vê-los subindo. Era o momento que gritávamos: “balão beijo” e quem estivesse do lado tinha que nos beijar!

Com o meu pai, Carlinhos, fazíamos as espadas. Hoje proibida. Era preciso cortar o bambu, encerar o cordão para enrolar no bambu, bater o barro, furar com a broca, encher de pólvora, colocar a boca-de-cor para fazer aquele efeito de chuvinha até pegar o rojão para sair rodopiando pelas ruas. Nesse processo eu só colocava a boca-de-cor e tampava com papel colorido.

O meu avô Fábio era o Senhor das plantações, no dia 29 de março, dia de São José, ele semeava os grãos de milho para comermos em junho. Ele plantava de um tudo e criava uma variedade enorme de animais. De raízes aos frutos, de galinha a cavalo, tudo tinha naquele sítio, a minha infância e adolescência foi arrodeada de vida.

Com os milhos nas mãos, trazidos por vovô Fábio e seus ajudantes, minha avó Carmem se juntava com tia Miralva, minha mãe, algumas vizinhas para fazer as iguarias. Geralmente o milho era passado na máquina de moer pelos homens ou por Zé Fábio, o meu primo do coração.

Tudo que era possível fazer com o milho tinha na nossa festa de São João: milho cozido ou quebrado -arrancados- do dia, são mais doces para assar na fogueira,  canjica, lelê, pamonha, bolo de milho. Além do milho tinha licor, amendoim cozido, queijo de cuia, cana cortada, era tanta comida... Tudo feito em casa.

E o tão esperado dia 23 chegava. Vovô, junto com meu pai, Zé Fábio, tio Edison e outros homens providenciavam carregar as toras de madeira para fazer aquela fogueira gigante que, às vezes, alcançava 29 de junho quando celebrávamos de forma mais tímida o São Pedro, padroeiro da cidade.

O dia todo era só arrumação, misturada com música, bebida, comida e a entrada e saída das pessoas que transitavam de casa em casa para comer, beber e celebrar. Era um entra e sai de gente que é difícil até imaginar, para aqueles que nunca viveram a tradição dessa época.

Na verdade, e de fato, não havia uma divisão precisa dos afazeres, todos faziam um pouquinho de tudo. Em todas as casas era assim. A cidade toda se movia para o grande dia.

Chega o final fa tarde outra arrumação começa. Quando pequenina as roupas tradicionais eram vestidas, o rosto era maquiado com bigodes de lápis para os meninos e bochechas bem rosadas para as meninas. Até os 14 anos, mais ou menos, também era assim na festa do colégio. Mas quando comecei a participar da guerra de espadas as roupas foram substituídas pela o jeans, os óculos de serralheiro, o capacete de obra e as luvas de couro.

Ficávamos um pouco em casa e depois saíamos pelas ruas, soltando fogos e parando nas casas de outras pessoas para comer e dançar o arrasta-pé. Da porta gritávamos: São João passou por aí? E já ia adentrando sem esperar resposta.

Todas as casas mantinham as portas abertas e sempre alguém tinha que ficar esperando os visitantes. Nessa brincadeira ficávamos até, mais ou menos, 2 horas da manhã, quando nós, os jovens, nos juntávamos para ir para a Festa do Porto em Cachoeira.

O retorno era pela manhã, subindo a ladeira com um cuidado quase insano por conta da neblina que poderia nos “empurrar” para o despenhadeiro que acompanhava a estrada.


Tranças juninas - Foto: Kithi

Além disto ainda tinha o ensaio da quadrilha no colégio, o casamento na roça, a dança do coco... Era o mês mais esperado por todos nós, e de forma diferente, ainda continua sendo.

E lá vou eu para Muritiba encontrar com os amigos de infância e celebrar com tia Miralva, que ainda faz o melhor licor e a melhor comida do São João do mundo!