Doris Pinheiro

Carta para uma ex-amiga (que vai continuar assim mesmo: sendo ex)

Da série me salte, me deixe, me largue, não me pegue não, não, não, me deixe à vontade

Foto: Colagens de Rael Brian

Vou de cara parecer uma chata, mas tem modinhas comportamentais que me irritam, e como a temporada é de Me Salte, lá vai!

Gratidão...

Para tudo, dizer gratidão...

Se vier acompanhado de mãozinhas juntas no WhatsApp, então, me dá vontade de sair correndo.

Nas minhas últimas experiências as pessoas que mais vieram com este papo de gratidão aprontaram ali pertinho na frente.

Eu acho que gratidão é uma coisa muito séria e profunda, que não pode ser distribuída de qualquer jeito e nem é sentida assim à toa.

Estar agradecida sim, pode ser uma constante, mas gratidão é um sentimento relacionado a situações e atitudes que interferem de forma decisiva na nossa vida.

Por isso ingratidão dói tanto né...

E em cima deste papo de gradação de atitude/sentimento tem também uma diferença que faço entre fidelidade e lealdade.

Nenhuma das duas coisas é muito comum.

Hahahahahah.

Mas é mais fácil perdoar uma infidelidade do que uma deslealdade.

É mais fácil ser fiel do que leal.

Pode parecer contraditório, já que para ser leal você tem de ser fiel.

Não sei...

Para mim a lealdade é como gratidão. É mais profunda. É mais rara.

Outra coisa que me irrita, talvez ainda mais, é a conversa de que devemos perdoar...

OK, tirar a mágoa de dentro do coração da gente faz uma enorme bem, mas perdoar porque o certo é perdoar, como uma obrigação espiritual, eu não acho nem certo, nem verdadeiro.

E eu quero saber se alguém advoga com o mesmo fervor em cima do ato de pedir perdão.

Nunca vejo ninguém dizer: “você errou com seu amigo,  sua família, no trabalho? Peça desculpas, peça perdão.”

Se as pessoas pedissem desculpas, perdão, com mais frequência, seria mais fácil perdoar.

E toda essa conversa na minha cabeça acaba evoluindo para um belíssimo trabalho artístico com o qual tive contato no Festival Internacional de Artistas de Rua da Bahia, realizado pelos guerreiros Selma Santos e Bernard Snyder.

Este ano eles trouxeram a performer paranaense Juliana Liconti, que sentadinha, lá em plena rua, fazia um convite através de uma placa que dizia: “escrevo cartas que não serão entregues”.

Juliana tem a plataforma “quandonde” (https://www.quandonde.com.br/) de intervenções urbanas em arte, e nesta ação propôs aos passantes que ditassem para ela cartas destinadas a pessoas cujo  contato tivessem perdido ou desfeito.

O motivo podia ser qualquer um: histórias mal resolvidas, frases não ditas, coisas que gostariam de dizer, mas faltou coragem, ou até mesmo algo que a pessoa não  tivesse a intenção de revelar, mas que colocada no papel ou ditada pudesse libertar.

Eu já fiz cartas importantes em minha vida, até porque me expresso melhor escrevendo do que falando.

Sou muito sensível e às vezes intempestiva e tendo a machucar com minha franqueza. Então, melhor escrever...

E falando de perdão lembro com tristeza uma carta que remeti por e-mail, depois de vários anos do ocorrido, e da qual nunca recebi resposta e muito menos um pedido de perdão.

Algumas pessoas que me conhecem sabem que eu fiquei viúva grávida. Com certeza você imagina como isso foi devastador.

Num final de semana depois da minha perda, meu irmão e minha cunhada acolheram a mim e à minha mãe para cuidar da gente.

Não foi preciso dizer nada. Ninguém disse nada. Eles apenas cuidaram da gente.

E eu ainda tive a linda surpresa de ser recebida por meus sobrinhos Flávia e Danilo, que também é meu afilhado, com um grande cartaz repleto de mensagens cheias de amor. Tenho ele até hoje...

Morava ao lado uma pessoa que tinha sido minha grande amiga na adolescência.

Ela apareceu então na casa do meu irmão supostamente para me ver.

No momento em que fiquei sozinha na sala da casa de meu irmão com ela e busquei o colo amigo que achei que podia ter, aconteceu uma das mais horrorosas e bizarras experiências de contato humano da minha vida.

Ela simplesmente desqualificou o que havia acontecido comigo e argumentou que sério mesmo era a amiga dela ter se separado e ficado sem pensão do marido.

E isso foi dito baixinho, com uma cara de crueldade, de prazer...

Não vou nem entrar em mais detalhes porque é muito desagradável. E não, não consegui reagir na hora.

Não sei como entender uma atitude destas até hoje.

Não quero mais saber das razões dela. Hoje acho que é uma pessoa que perdeu a razão. Talvez nunca tenha tido.

Mas pensando em que carta eu mandaria para ela hoje, sem colocar os palavrões que ela merece ouvir, acho que um dos trechos seria assim:

Nada querida ex-amiga

Sinto por você não ter conseguido se tornar a mulher livre e independente que desejava ser. Ou devo dizer, não teve coragem de ser. Você devia ter na sua juventude mais tenra enfiado o pé na jaca, dado muito beijo na boca, ter seguido profissionalmente o que desejava, ter fugido com o circo! Gaiola dourada é confortável, mas tem um preço.

Sem afeto, eu

Voltando ao começo do texto, repito que detesto modinhas comportamentais. Elas são para mim uma das faces da hipocrisia.

Prefiro um bom sentimento (nem sempre considerado bom) assumido, mesmo “fora de moda”.

E perdão para quem pede perdão.

Para quem merece perdão.

Enquanto isso eu sigo tentando aprender a perdoar mais...

Sobre as colagens que ilustram o texto :

São do catarinense Rael Brian, que trabalha com colagem e outras técnicas muito usadas na chamada “arte marginal”.

Nesta série o trabalho impactante dele com rostos desconstruídos.

Apaixonado por jazz, punk rock e skateboard sua colagem é encarada por ele como ferramenta crítica.

Gostei do rapaz... intenso.