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O 'filósofo' Ravengar

Foto: Romildo de Jesus
Ravengar
Ravengar

 Quase 10 anos atrás das grades vendo o mundo por um viés bem diferente dos que vivem nessa selva civilizada. Tempo para meditar, ler muito, tornar-se quase um “filósofo”. De volta às ruas por uma semana, direito concedido pela Justiça, Ravengar, o homem que ganhou a alcunha de maior traficante da Bahia, quer aproveitar cada minuto dessa dádiva para ele, que é a liberdade. Ele diz que aprendeu muito na cadeia e de lá até se arvora a escrever crônicas e comentários sobre o mundo cá de fora. Seu último alvo é o bicheiro Cachoeira. Ele se vale de lembranças do passado para contar o que era o bicho nos velhos tempos e o que ele é hoje. Neste depoimento exclusivo ao jornalista Paulo Roberto Sampaio, em que conta como se inspirou para tomar gosto pelas letras, ele fala da vida atrás das grades, a verdadeira revolução que estabeleceu na unidade 1, onde o respeito ao próximo e aos diferentes passou a ser lei, onde homossexuais deixaram de ser escravos sexuais ou empregados domésticos e passaram a ser tratados como gente. Com dignidade e respeito. No isolamento da prisão, ele passou a se comunicar de alguma forma com personalidades marcantes da vida do País e nesse seu mundo imaginário já “entrevistou” gente famosa e relata tudo em seu blog, escrito na cadeia  e postado e administrado pela neta: http://www.blogmeuavo.blogspot.com.br/

 
Pergunta – Você disse que nesses 10 anos aprendeu a conviver também com as diferenças, com as  diferentes culturas. O que significa isso?
Ravengar – Sim, com as diferentes culturas porque a gente vê que a sociedade tem aquela imagem de que o homem preso já não é mais nada, não possui mais nenhum elemento de produção, quer dizer, isso no pensamento equivocado que a sociedade prega. Na verdade, o homem preso tem muito a dar porque ele está atrás das grades, mas o pensamento dele está livre. E aí, quando ele está nesse dilema, entre passado e futuro, o homem que tem força de vontade quer aprender para superar as coisas ruins que viveu e foram aí encontradas. Se ele pensa assim, ele consegue. E aí, graças a Deus eu procurei ir pelo caminho da literatura, por algo que  chamo de jornalismo. 
 
Pergunta  – E o que é que essa literatura lhe passou?
Ravengar - É através da literatura que a gente passa a absorver o que é a vida. Permite que você possa pensar no futuro e eu pensei esses anos todos nisso, que pra mim a palavra errar, nunca mais. Isso é uma coisa que a gente aprende lá dentro. Se tem força de vontade, aprende. Aprendi porque a cultura é o alimento de poucos. A gente sabe quem é o homem inteligente, sábio e o homem da cultura. São as três vertentes que a gente às vezes consegue decifrar de maneira bem clássica, mas são tão distintas!  Eu que passei esse tempo todo preso e hoje não me arrependo. Estou lutando pela minha liberdade imaginando que o sol amanhã vai brilhar mais forte do que era antes. Eu tenho um raciocínio convicto, eu acho que na maioria das vezes, o bem faz mais mal do que o próprio mal por ser o parceiro eterno do mal. A gente se machuca e vai lá com esparadrapo e mertiolate e trata daquela ferida, porque todos os alicerces humanos passam pela coluna do bem. O bem é o alicerce de tudo, mais de repente, no meio do caminho, aquele bem se transforma no mal que seria o bem do passado transformado no mal do presente e do futuro. Eu falo sobre isso nos meus editoriais, não com a sabedoria do senhor, editor-chefe, com o seu gabarito, com essa vivência toda, mas com o meu modo de ver a vida.
 
Pergunta - E qual a leitura que você faz do jornalismo que tanto parece fasciná-lo?
Ravengar - Eu vejo que o jornalismo depois da internet  perdeu a essência de um profissional buscar a matéria além dos fatos. Hoje na internet o cara puxa uma coisa que vem de lá e se der uma barrigada vai todo mundo de uma vez só. Então, acho que o jornalista hoje obedece às regras que as faculdades ensinam dentro dessa expressão cibernética(!) mas acho que houve uma decadência de valores, que a gente percebe na vivência do dia a dia, nas programações. 
 
Pergunta  – E de lá de dentro, como você consegue ter essa visão do mundo e cá fora?
Ravengar – Lá a gente tem outra visão e eu descobri que gosto de ler. Acho que o que forma o cidadão é a leitura, a filosofia. Eu gosto de sociologia, que é o que alimenta a raça humana, porque a sociologia é uma das poucas culturas onde sua visão vai além do alcance da sua vista. Então, eu pauto muito por esse caminho e aí a gente vê as comunicações e vai interagindo, a gente vê as críticas e as programações. Estou escrevendo agora sobre as CPIs. Estou falando em CPIs e às vezes a forma como elas se arrastam já é um sinal para a sociedade da impunidade que vem ai. O Brasil é um país democrático, a gente vive numa civilização moderna, mas às vezes parece distante dos padrões dos países do primeiro mundo. 
 
Pergunta  – Você tem tido alucinação na cadeia a ponto de conversar com políticos, com gente que está no além?
Ravengar – A conversa em que procuro me espelhar é colocando meu sentimento em alguma entidade, sei lá, que eu acho e acredito que esteja me protegendo. Acredito numa entidade cósmica e acredito muito que a visão daquelas coisas flui de uma entidade. Sou um protegido de Deus, já sai de vários males e estou aqui firme e forte. 
 
Pergunta  – A cadeia ensina, Ravengar? O que você acha?
Ravengar – Se tiver força de vontade, ela ensina, sim, mas se não tiver, não. Mas o preso também é um ser humano. Sua pena deve ser cumprida, mas revista quando a lei lhe faculta esse direito. Ele não pode apodrecer na cadeia só por não ter um advogado. Por não ter a quem recorrer.  Se preso votasse, tudo seria diferente. E em diversos países já estão pensando nessa ideia. Aí iriam aparecer as pessoas interessadas em pegar essa massa que está atrás das grades, esses milhares de presos que advêm de milhares de famílias, esses milhares de votos e tratar com mais respeito. Acho que os políticos não se atentaram ainda. Hoje o sistema penal é muito frio. Manda dar comida ao preso, manda cumprir a pena dele e daí não recupera o ser humano. Na verdade esse tipo de cultura onde o preso vive numa ociosidade, onde convive esse tempo todo com a cabeça vazia, no tempo é negativa. 
 
Pergunta  – Com toda essa sua “filosofia” o que você fez para minorar essa situação lá dentro? É possível fazer algo detrás das grades?
Ravengar - A minha experiência na cadeia fez mudar algumas coisas. Procurei mudar algumas origens da perversidade que havia dentro do presídio em que eu estava e colocar uma teoria pacifista onde todos compreendessem que estavam ali no mesmo sofrimento. Evidentemente que a gente que está preso vive uma vida de terror. Só resta sonhar com o amanhã e imaginar a liberdade, imaginar que ela virá, que amanhã seremos soltos e esse dia nunca chega. E aí aparece um monte de problemas. Mas ainda assim lutamos pelo respeito ao semelhante, ao homossexual. No meu pavilhão não há mais esta discriminação. Tudo muda, a cultura e as informações estão mudando e tenho certeza que o sistema penal já deu um passo muito importante para essa mudança.
 
Pergunta  – Tem muito preso que já cumpriu pena e continua apodrecendo lá dentro?
Ravengar – Tem. Isso aí é fato. Às vezes o direito constituído pela lei já está garantido, mas a falta de um patrono oficial por conta do estado de pobreza que o elemento se encontra, sem família nem nada, provoca as injustiças. Às vezes ele passa do limite e não tem assistência assim como eu, que tenho advogado. Mas muitos não têm e deveriam ter porque o Estado tem uma defensoria pública, mas efetivamente não é o modelo ideal por conta da enorme demanda e com isso a defensoria às vezes não dá conta. Não é força de vontade que está no homem é excesso de processos mesmo. Mas existem pessoas do bem que têm no coração o desejo de ajudar ao próximo. Isso está na índole e não é da profissão. Enquanto isso a gente vai vivendo. 
 
Pergunta  – Com penitenciárias cada vez mais lotadas, a sensação que nos chega é de que o que prevalece atrás das grades é a lei do cão. Isso é fato?
Ravengar - Nos meus editoriais falo que o sistema que está aí hoje não tem mais lugar para os brutos. Os brutos já se foram. Hoje é uma nova era, hoje prevalece o diálogo, a cultura. Tenho alguns editoriais até dos eventos que participei lá dentro mostrando como é que eles socializam um preso. A gente cria uma cultura de valorização e às vezes a gente engrena que todos participem daquilo ali. Eu acho que a socialização começa por esse lado. Isso aí é que precisa ter um pouco de reflexão por parte do Estado. Eu tenho a cultura do mundo da forma que ela chega na penitenciária. Criei teatro, várias peças, inclusive o arcebispo esteve lá duas vezes, o Dom Murilo. O convidei e ele esteve lá e achou muito interessante a peça e outras ações. Combatemos a homofobia como já disse. O homossexual dentro do presídio sofria uma discriminação intensa, era duplamente condenado. Pela Justiça lá fora e pelos demais presos, lá dentro. Era terrível a cultura nesse sentido, a violência contra os estupradores, pedófilos, entre outros. Eu consegui mudar esse paradigma, criei esse respeito e coloquei o homossexual dentro do valor que ele está ali convivendo e dentro do valor dos outros. Acabou essa história de que o homossexual era que fazia comida, lavava roupa, virava mulher de outros presos. Isso acabou. Tudo isso aí lá no Módulo 1, essa cultura da perversidade, consegui mudar. O projeto “Teoria da paz” graças a Deus foi edificado dessa natureza e está dando certo.