Jolivaldo Freitas

Becos, vielas, lama, patrimônio, gostosonas, gostosuras, beleza, história, lixo, carros, passado e futuro

 Eta cadinho bom! Eta cidade retada! Eta nosso amor que resiste a todas as intempéries. É assim que penso quando na maior pressa - e olha que saio de casa com pelo menos uma hora de antecedência para poder chegar a qualquer compromisso -, fico preso no engarrafamento do Rio Vermelho, Amaralina, Pituba, Garibaldi, Vasco da Gama, Avenida Sete, Paralela, Tancredo Neves, Sete Portas, Itapuã e outros cantos onde a Transalvador finge que organiza e os motoristas fingem que obedecem. 


A princípio começo a me irritar, xingo o prefeito - mas lembro que votei nele; na sinaleira seguinte o ofendo de novo -, discuto com o motoqueiro que acaba de quebrar o retrovisor do meu carro; dou banana para o taxista que acaba de fazer ziguezague e pergunto ao motorista do buzu se está cego para vir para cima de mim com aquele trambolho.

Mostro o dedo do meio para a mulher no carro que me impede de passar – deixando claro que antes disso ela me mandou tomar não sei lá onde, pois mulher no trânsito desta metrópole está mais ousada do que homem e nunca vi uma mulher dar passagem ou respeitar a preferencial e ainda quer fazer pega – e ela me ameaça dar porrada e vejo na chaparia que tem um adesivo de uma academia de boxe e me recolho, encaixado no banco do motorista que não sou besta de apanhar no trânsito e ainda aparecer enxovalhado para milhões no Youtube. 
 
Mas daí que vou me acostumando com o trânsito e aproveito para apreciar a cidade, coisa que não se poderia fazer se ele fluísse. Vejo quão linda, única e magnífica é esta velha senhora de origem portuguesa. A mão das cidades brasileiras, capital e berço do Brasil, que tão bem soube receber seus filhos europeus, africanos, asiáticos, gregos e polacos e todos se amalgamaram com a indiada, numa só pele recheada de alma e do sopro do tempo e hoje somos todos baianos, o que vale dizer, somos plasma do centro do universo. Até o sol fica quieto, não gira, para apreciar a paisagem. A lua se enche de prazer e nos recobre de prata nova.   
 
Nosso amor por Salvador resiste a todos e a tudo. Claro que sofremos algumas interferências e nos adaptamos, nesta, incorporamos outras culturas e as moldamos ao nosso bel prazer, é claro. Tudo de forma sutil para não ofender, humilhar e para não chamar a atenção do não-nativo.

Permitimos que aquele que pensa em nos colonizar, pense que o está fazendo e não note que está sendo abduzido. Salvador é terra de abduzir qualquer um que venha de qualquer lugar. Assim o foi com os franceses, holandeses e até alemães que nos quiseram invadir. Mesmo o português que não se adaptou foi posto para correr com o rabo – lá nele – entre as pernas.   
 
Nos anos 70 e 80 do século passado tivemos uma invasão dos bárbaros.

Com o advento do Centro Industrial de Aratu e Polo Petroquímico de Camaçari horas de paranaenses, gaúchos, paulistas, cariocas, gringos de outras paragens além-mar e até argentinos invadiram nossas plagas. Chegaram para ganhar dinheiro; em busca dos melhores salários e a demanda de técnicos especializados e foram logo dando ordem unida, esculhambando, querendo dar uma nova formatação.

Irritavam-se com o que consideram como morosidade nas filas dos supermercados. Queriam botar catchup no acarajé. Queixavam-se do atendimento nos restaurantes e mandaram vir garçons de fora para as churrascarias. E queriam silêncio nos teatros e nos cinemas. Que os ônibus parassem nos pontos e o ferry boat saísse na hora.

Mediam até o tamanho do chicharro. Exigências mais absurdas, pois a velha Cidade do São Salvador da Baía de Todos os santos tem seu movimento próprio. Seu tempo certo. Uns conseguiram se adaptar e se falam mal é só por hábito. Outros foram embora e nos deixaram em paz com nosso ritmo de fazer as coisas. Mas morrem de saudade. 
 
  Todo mundo passa. Tudo muda. Tudo passa. Salvador é como disse o gaúcho, que nada tinha de xenófobo, Mário Quintana em seu “Poeminha do Contra”: 
“Todos estes que aí estão 
Atravancando o meu caminho, 
Eles passarão. 
Eu passarinho!” 
 
  Mas Salvador fica e ficará, a despeito dos engarrafamentos, do lixo acumulado, dos buracos nas ruas, do cara que bota suas coisas de fora e mija no poste. Da moça que tenta esconder suas coisas e mija no beco. Do buzu que demora a passar. De tantas mortes na periferia nos finais de semana. Do crack. Da falta de craque no BaVi. Do banco que não respeita a lei dos 15 minutos. Do portador de necessidades especiais que não tem acesso. Do pagodeiro que não respeita a Lei do Silêncio.

Da recepcionista da clínica médica que não está aí para nossas dores. Do horror no mau trato aos animais. No elevado índice de assassinato de homossexuais. Da baiana que faz acarajé com feijão misturado e abará com Vitamilho. Do delegado que nos cobra por fora para recuperar nosso carro roubado ou prender o bandido. Dos flanelinhas que nos acharcam. Do lixo amontoado e de quem escarra em nossa cara e cospe chiclete no passeio público. 
 
  Salvador é um sonho. Com seus renitentes cheiros de dendê, mangueiras carregadas, salitre e chuva. Das negras, brancas, mulatas, cafuzas e cabo-verde que nos enfeitiçam e alegram as vistas cansadas. Do azul da Baía de Todos os Santos. Do Dique do Tororó que uns historiadores garantem e outros desmentem que teria sido uma obra dos invasores holandeses. Do céu de luz intensa. Das noites estreladas e de temperatura amena.

Das almas perdidas. Da presença sutil de Caramuru, pai de todos nós; de Catarina Paraguaçu, mãe; de Luis Dias, tracejador e Tomé de Souza desbravador. De Irmã Dulce dos Pobre e Cosme de Farias. De Jorge Amado e de Caymmi. De Elsimar Coutinho, do Gantois. De Marco Polo (o do coco do Porto da Barra que se foi recentemente e ninguém notou) e de Américo Vespúcio que singrou nossas ilhas. 
 
Salvador que se renova a cada aniversário tem muito mais de positivo que de negativo. E de onde estejamos sempre voltamos para seu colo. Taí! Todo soteropolitano é um filho da mãe! Teje dito. Parabéns caro cidadão. Parabéns cidade. 
 
Soteropolitano: tem vocábulo mais bonito de se dizer? Chega a arrupiar.