Em 2 de fevereiro, comemora-se o Dia de Iemanjá. Tida como uma das figuras mais populares das religiões de matrizes africanas, a orixá é reconhecida pelo povo Iorubá como a rainha das águas.
No Brasil, o culto em sua em sua homenagem transferiu-se para o mar, visto que no processo de desenvolvimento da religiosidade africana em solo brasileiro, os rios e cachoeiras de água doce foram atribuídos à outra orixá da mitologia iorubá, Oxum.
O estado da Bahia, primeiro local a receber povos de diversas regiões do continente africano por conta do processo de colonização, se estabeleceu como o berço do Candomblé e da Umbanda, tendo o maior número de devotos destas religiões.
Na música, ela está presente em canções de alguns dos maiores ídolos nacionais, como Dorival Caymmi, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gal Costa, entre outros. Nas artes manuais, ela também se destaca em diferentes formatos, técnicas e materiais.
“A Bahia é o local que mais concentra artesãos e artistas populares que representam esta entidade por conta do processo histórico que a levou a ser a região do Brasil com o maior número de pessoas de origem africana. E embora cada artista ou artesão imprima a sua própria identidade, as diferentes Iemanjás que encontramos por lá carregam consigo algumas características específicas que nos permitem identificá-la. O vestido, quase sempre em tons de azul, e o espelho na mão direita são alguns desses elementos”, revela Lucas Lassen, curador e diretor criativo da Paiol, uma das principais lojas de artesanato de tradição e arte popular do país.
O nome Iemanjá vem da expressão “Yéyé Omó Ejá”, que numa tradução literal seria algo como “mãe cujos filhos são peixes”. Como resultado do sincretismo religioso brasileiro, que associa figuras africanas e indígenas a símbolos da Igreja Católica, Iemanjá também é frequentemente relacionada à Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora das Candeias e até mesmo à Virgem Maria. Por meio da cerâmica, do metal e outras técnicas, artesãos baianos têm utilizado a criatividade para representar sua fé e devoção àquela que é considerada a rainha do mar.
Jan Araújo | Lençóis, Chapada Diamantina
Nascido em Salvador, mas criado em Lençóis, na Chapada Diamantina, Jan Araújo começou no artesanato por influência de seu pai, que também é ceramista. Com ele, trabalhou dos 13 aos 26 anos, quando decidiu deixar o ofício para se aventurar em outras áreas.
Longe do fazer manual e em outras cidades, ele trabalhou em um campo de Golf e também em lojas de equipamentos para trilhas, visto que a região da Chapada é reconhecida por suas montanhas. “Por mais que a gente tente se afastar da arte, aquele que é artista sempre acaba se reaproximando dela”, revela. E assim ele o fez.
Em 2011, depois de voltar ao ateliê, ele levou algumas peças para uma feira de negócios para artesãos realizada pelo Sebrae. “Lá, eu vendi todas as obras e saí com várias encomendas. Foi o sinal que eu precisava para seguir com este trabalho”, afirma Jan.
Inspirado pela artista plástica Eliana Kertész, Jan Araújo diz gostar de fazer peças “cheinhas”
Embora não siga uma religião de matriz africana, ele diz que a relação com os orixás é parte do cotidiano da Bahia. Como isso, desde muito cedo, as entidades do Candomblé costumam fazer parte de seu portfólio. Para os orixás e outras peças,
Jan desenvolveu um estilo próprio que, segundo ele, é influenciado pelas obras da artista baiana Eliana Kertész (1945-2017), reconhecida por esculturas de mulheres volumosas e com formas arredondadas. “Eu gosto desta ideia de peças gordinhas e, no meu caso, eu acho que a cerâmica favorece este formato. Por isso, a minha Iemanjá é assim, mais cheinha, mas continua carregando os elementos que remetem ao movimento do mar”, completa.
Aless Teixeira |Salvador
Os primeiros trabalhos de Alessandro Teixeira, mais conhecido como Aless, foram ainda na adolescência, por volta dos 16 anos de idade, por influência do pai, que também é artesão. Trabalhando com o latão, o cobre e diferentes tipos de metais, ele passou a criar peças bastante populares no artesanato baiano, como a figura do peixe e as pencas de balangandãs, também conhecidas como jóias de crioulas.
Depois de sair do ateliê de seu pai em 2002, ele abriu o próprio espaço, porém, em seus processos de criação, passou a estudar as contribuições artísticas de outros nomes baianos nas artes como Jorge Amado, Mário Cravo, e também o escultor Tatti Moreno, com quem teve a chance de trabalhar por 12 anos. “Eu trabalhava metade do tempo na minha oficina e a outra metade com o Tatti. Neste período, fui aperfeiçoando minhas técnicas e desenvolvendo a minha identidade estética”, diz Aless.
Aless utiliza os metais para dar vida às suas criações
Sua relação com os orixás vem de sua religião, o Candomblé, onde ele é Ogã suspenso por Iemanjá, o que significa que elé um tipo de sacerdote que, durante os rituais litúrgicos, atua como uma espécie de zelador da casa, mantendo a segurança e dando suporte a todos aqueles que incorporam os orixás, além disso, é responsável pelo toque dos atabaques e pelas oferendas.
“O terreiro que eu frequento é regido por Iemanjá e a minha relação com ela é muito forte. Por isso, no meu trabalho, eu gosto de manter as características litúrgicas, não só com ela, mas com qualquer entidade religiosa. Acho que é importante manter as características originais”, completa.
Karla Issa | Salvador
Nascida e criada em Salvador, Karla Issa começou a se interessar pelo artesanato aos 15 anos, quando passou a fazer as próprias roupas, a produzir colares com estética africana feitos com pedrarias e a vendê-los no centro histórico da cidade. "Por parte de mãe, quase todos tinham alguma habilidade artística desenvolvida de forma autodidata. Além disso, nos anos 1970, ainda existia uma aura meio hippie no mundo que nos incentivava a criar coisas”, revela. Mais tarde, ela se formou em Assistência Social, profissão que exerce até hoje e que divide o tempo com os trabalhos artesanais.
Karla Issa faz pequenos oratórios em homenagem a orixás e santos católicos
Sua relação com os orixás também vem de sua religião. No Candomblé, Karla é Ekedi, posto feminino de alta importância, cuja função é zelar pelos seus companheiros em transe tomados pelos orixás no momento dos rituais. Utilizando materiais majoritariamente reciclados, seus trabalhos estão fortemente ligados às liturgias religiosas. Karla faz escapulários e oratórios, utilizando retalhos de couro, caixas de fósforo e técnicas de pintura. Dentre elas, as peças mais procuradas por clientes costumam ser de Iemanjá.
Mestre Gerard e Elson | Barra
No oeste da Bahia, às margens do encontro entre o Rio São Francisco e o Rio Grande, está a cidade de Barra, onde nasceu o artesão José Geraldo Machado da Silva, mais conhecido como Mestre Gerard, por causa de um apelido de infância que ele adotou como nome artístico. Católico de criação e candomblecista por iniciação, ele utiliza o barro dos rios que cortam a cidade para criar esculturas que refletem o sincretismo religioso.
De forma autodidata e inspirado pelas histórias que ouvia quando criança, de que os escravizados cultuavam os orixás usando santos católicos, ele cria peças que retratam duas imagens em uma. Assim, Oxóssi se mistura com a bravura de São Jorge e as vestes de Nossa Senhora das Candeias com as de Iemanjá, formando peças nas quais as duas crenças convivem em harmonia.
Gerard tem ensinado seu ofício a dezenas de artesãos ao longo do tempo
Além de artesão, Gerard é Babalorixá do terreiro Pai Xangô das Cachoeiras, local onde mora e no qual também funciona seu ateliê escola, onde tem ensinado gratuitamente diversos artesãos. Elson Alves, seu primeiro discípulo, trabalha em conjunto com o mestre desde 1994, não só no ateliê, mas também nas atividades do terreiro. “Ele é meu tio de segundo grau e, boa parte do que sei foi ele quem me ensinou. Dia 2 de fevereiro, para nós é uma data importante, porque fazemos um cortejo especial para Iemanjá que atravessa parte da cidade celebrando a grandeza desta orixá”, finaliza Elson.