Saí das redes temporariamente. Não de todo, pois não fechei contas em decorrência de compromissos profissionais.
Na verdade, não tenho publicado. E há motivo. Percepção de que nossas vidas e relações estão calcadas no espelhamento de certa alegria compulsiva; bem estar fórceps e etarista.
Parto da premissa hipotética da instagramização da vida societária.
Há uma dualidade. A que vivemos no nosso dia-a-dia, na lida do trabalho e convivências com outros seres humanos; e naquela que a grande maioria tem priorizado, a exposição nas redes. Mais de 90% das postagens dizem respeito a momentos felizes e alegrias postiças.
O capitalismo sabe o que faz.
No caso do Brasil, num país onde mais de 33 milhões de pessoas não têm o que comer, as agendas nas redes sociais que ganham relevância passam por conteúdos da estadia de brothers numa casa-muralha (Big Brother); das dissonâncias entre as irmãs Simone e Simara; de performances imbecis no Tik Tok a stories com narrativas melancólicas sobre as bondades de Deus emolduradas com bundas e peitos. Tipo, Deus no comando e minha bunda na retaguarda.
A algoritmização da "vida" digital está levando ao rebaixamento da cognição coletiva (emburrecimento em escala jamais vista). Pesquisadores de fôlego como o jornalista de tecnologia Max Fisher, o filósofo da tecnología Chul-Han, entre outros, têm alertado sobre os percursos futuros da humanidade face a estas novas fronteiras.
Digo novas porque desde o rupestre o homo sapiens, lá no paleolítico, já descrevia sua vivência nas cavernas com ícones riscados. O que se vivencia hoje é uma espécie de rupestre digital.
Da sua sociogênese, lá no Vale do Silício, Califórnia (EUA), a construção da internet a partir dos seus primeiros experimentos acenava como espécie de salto libertador à humanidade.
Passada a Guerra Fria e com a derrocada dos ensaios iniciais do socialismo, tendo como ápice a dissolução da União Soviética, os militares estadunidenses relegaram nos subterrâneos experimentos de tecnologias de comunicação que possibilitariam "conversas" entre máquinas, o ponto a ponto (P2P - point to point).
O objetivo era de que diante de uma hecatombe nuclear, seria preciso manter alguma tecnologia de comunicação. Fato é que estes experimentos foram apropriados por hordas de libertários, ex-hippies, grupos alternativos etc. E começaram a constituir as primeiras startups para empreender pequenas empresas. A internet engatinhava no final dos anos 70 do século passado.
Notadamente que o capitalismo tem capacidade de se reinventar. E nesse movimento, se apropriar do que entende ser nicho de lucro, muito lucro. Não sem razão que a genialidade do sistema conseguiu nos fazer concomitantemente de consumidores e produtores. Trocando em miúdos, pagamos para trabalhar para o sistema Gafam (Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft). Isso mesmo. Não só compramos seus produtos.
Cada clique de busca no Google é um trabalho gratuito cedido com "amor" à maior empresa do mundo. Não importa se os conteúdos são mentiras, tratam de temas sensíveis ou reproduzem suicídios ao vivo. Tudo é mercadoria. Por isso que estas big techs latem como cães raivosos quando se propõe o controle e a normatização das suas atividades. Chamam de "censura".
Às favas com a saúde mental dos jovens; com a crescente da violência nas escolas; com a cultura belicista que incrementa a violência social; com o reforço à exploração dos uberproletários, aqueles que conduzem comida nas costas sem qualquer legislação trabalhista que os proteja. Cinicamente, incutiram neles que são "empreendedores". Empreendedores que não têm amparo legal, não são donos da bicicleta ou da moto. E nem da comida.
Novesfora, um país como o Brasil ainda agrega outro problema: a queda abrupta da leitura. Livrarias fecham ou se limitam a vender bugigangas. Não há mais livrarias de bairros. Editoras sobrevivem às turras. E a classe média, aquela ensanduichada entre a classe dominante e o proletariado, deteriorada economicamente, sequer sabe onde se encontra na História. Porque burra, ignorante, iletrada e que com a internet avolumou seu deblaque cognitivo. É mais confortável dar likes em conteúdos cretinos do que se debruçar em fontes de conhecimento. É a grande boba da corte.
Em resumo, aqui não se trata de nenhum discurso ludista. Tão pouco a negação das novas tecnologias, que são bem-vindas. O problema reside no seu modelo de apropriação.
É chegado o momento de profunda reflexão do que estamos fazendo das nossas vidas nesse mundo onde a inteligência artificial está nos moldando e forjando ao caos mental e social. Certeza de que enquanto rabisco estas linhas alguém empunha um celular, abre os dentes, e pensa para si próprio, "selfie, logo existo", tomando emprestado o título do livro do psicanalista Marcelo Frederico.
Zeca Peixoto é jornalista e mestre em História Social da Mídia