Como é possível uma empresa listada na Bolsa conviver com uma inconsistência de R$ 20 bilhões, no mínimo (a alavancagem pode ser ainda maior) escondida em seu balanço sem chamar a atenção dos órgãos controladores e dos serviços de auditoria por longos 7 a 9 anos?
É a pergunta que se faz o mercado, no caso da Americanas. E empresa lançava mão, durante todo esse período, de uma prática comum: o risco sacado (obtenção de recursos financeiros para o capital de giro através do processo de antecipação de recebíveis), também conhecido como confirming ou forfait, um processo em que o banco antecipa o valor para o fornecedor na data de solicitação e recebe posteriormente do cliente por ocasião do vencimento.
Com isso, obtinha acesso a crédito sem precisar recorrer às altas taxas de financiamento.
Até aí, nada demais. O problema começava no momento em que as transações eram contabilizadas como “conta de fornecedores”, quando deveriam ser registradas como dívida bancária.
Resultado: um rombo maior que o patrimônio líquido da companhia registrado ao fim de setembro (abaixo de R$ 15 bilhões) e o derretimento da AMER3, com perdas de quase 80% no primeiro momento (R$ 8,4 bilhões em valor de mercado) e pelo menos 2,5 vezes o que a companhia declara ter em caixa: R$ 8 bilhões.
Pior: a companhia declarou à Justiça ter dívidas em montante aproximado de R$ 40 bilhões.
O impacto vai além dos ativos da Americanas e respinga, também, sobre o crédito bancário. Um estudo do Bradesco BBI revela que o Santander Brasil e o BTG Pactual têm uma importante exposição ao segmento de varejo ( cerca de 7% do crédito total), seguidos por Itaú e ABC Brasil (3%), Banrisul e Banco do Brasil (2%).
Quando se leva em conta o capital total, o Santander Brasil registra a maior exposição (42%), seguido pelo ABC Brasil (24%), BTG Pactual (23%), Itaú (22%), Banrisul (13%) e Banco do Brasil (12%).
Os três principais credores da Americanas (levando-se em conta todos os financiamentos) são o Bradesco (BBDC4), o Santander (BCSA34) e o Itaú (ITUB4), com R$ 4,7 bilhões, R$ 3,7 bilhões e R$ 3,4 bilhões a receber, respectivamente.
O Bradesco lidera as operações de risco sacado com a Americanas: dívida de R$ 3,9 bilhões, com o Itaú vindo em seguida (R$ 2,7 bilhões) e o Safra em terceiro (R$ 2,1 bilhões). Seguem-se BTG (R$ 1,9 bilhão), Daycoval (R$ 600 milhões), Banco do Brasil (R$ 300 milhões) e ABC (R$ 300 milhões).
Além dos pontos de venda físicos, o Grupo Americanas detém as seguintes marcas: Americanas.com, Shoptime e Submarino.
O que fazer, agora?
No caso dos acionistas, a orientação de especialistas em investimentos é aguardar o que vai ser feito pela companhia para contornar esse rombo bilionário. Por exemplo, um follow-on (emissão secundária de ações) bilionário, venda de ativos, renegociação de dívidas e aumento de capital.
Os que ainda não possuem a AMER3 em sua cesta de investimentos devem manter-se distantes do papel, por enquanto, já que a empresa ficará muito enfraquecida até para enfrentar seus concorrentes diretos no segmento do varejo, casos do Magazine Luiza, do Mercado Livre e da Via.
As ações da companhia devem manter-se em um cenário de volatilidade, nos próximos pregões, até porque começam a chover interpelações à Justiça e à CVM-Comissão de Valores Mobiliários.
A Justiça do Rio de Janeiro já negou pedido de efeito suspensivo apresentado pelo Banco BTG Pactual contra a decisão da 4ª Vara Empresarial da Capital que deferiu o pedido do Grupo Americanas para que qualquer bloqueio ou arresto de bens e o pagamento de dívidas não fossem aplicados até que um eventual plano de recuperação judicial seja apresentado pelo grupo em prazo de 30 dias.
A decisão é da desembargadora Leila Santos Lopes, da 15ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que considerou não identificar risco grave de não cumprimento das obrigações contraídas junto ao BTG Pactual que justificasse a concessão do efeito suspensivo da decisão na primeira instância.
A magistrada considerou que, mesmo com um eventual deferimento do processamento da recuperação judicial, os interesses dos credores podem ser preservados.
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) notificou a varejista a prestar esclarecimentos sobre os impactos aos consumidores das dívidas com bancos reveladas no balanço.
A Senacon quer entender os seguintes pontos: quais os impactos imediatos sobre os consumidores; quais os impactos a médio e longo prazo; e quais as políticas e canais de solução de eventuais conflitos para os consumidores. O órgão monitora condutas que possam caracterizar infrações às relações de consumo com repercussão nacional.
A Lojas Americanas deixou em aberto a possibilidade de pedir recuperação judicial, ou seja, quando a empresa faz o pedido à Justiça para evitar sua falência.
De acordo com o CEO da Quist Investimentos, Douglas Duek, a alternativa é a mais correta, dado o tamanho da dívida da empresa e da potencial necessidade de capital, além do número de credores envolvidos.
“Os balanços revelam que as Lojas Americanas possuem 0,015% de lucratividade. Isso significa dizer que, para pagar R$ 40 bilhões, é preciso faturar entre 2 e 3 bilhões. Fazendo uma análise fria, ao pedir recuperação judicial, ela poderá renegociar as dívidas com os credores de forma mais fácil”, explica o especialista.
Douglas explica que, embora tudo leva crer que a empresa esteja “caminhando para uma recuperação judicial”, isso não significa dizer que ela está entrando em falência. “É uma empresa consolidada e com grande potencial no mercado. Possivelmente terá que fazer venda de ativos ou se capitalizar, mas não chegará ao ponto de falir”, destaca Duek.
Para o especialista, esta semana deverá ser bastante turbulenta. “Quando não havia notícia alguma de uma possível recuperação judicial, o mercado reagiu mal no primeiro dia, chegando a dizer que as ações caíram 77% e achando que a empresa valia esse percentual. Como o anúncio de recuperação foi feito recentemente, provavelmente veremos acionistas que possuem ações na bolsa reagindo mal”, diz Douglas.
Douglas Duek, especialista em recuperação judicial, considera incerto o futuro da Americanas. ”O varejo hoje está em uma situação muito difícil. Se formos reparar, já vimos muitas críticas para a Via Varejo, Magalu e outros. Então é um setor muito criticado tanto do B2B quanto no B2C. No caso da Americanas, o foco agora é se recriar, colocar novos produtos, serviços, agregando valor de uma forma diferente. Então, não dá para ficar vendendo bombons nas lojas onde também pagam aluguel porque hoje ela já não tem a mesma margem e lucratividade que tinha no passado”, diz Douglas.
Duek explica que, além de se recriar, a Americanas precisa mudar a forma de fazer mercado e tentar uma reconciliação com seus credores que se sentem expostos e até traídos. O especialista ressalta que nos últimos 10 ou 15 anos, o Grupo já vem seguindo uma linha progressiva prejuízo e de margem de lucro ruim, por isso é precisa de uma virada de chave e transformação de marca para que exista um futuro.
“A Americanas vai ter que se recriar para aumentar essa margem de contribuição drasticamente e renegociar suas dívidas dentro da recuperação judicial para ficar menor e mais fácil de pagar esses R$40 bilhões em dívidas, buscando uma viabilidade que agora não existe”, ressalta.
É possível evitar rombos em empresas?
O rombo encontrado na Americanas partilha paralelos com o caso Enron Corporation, que ocorreu nos Estados Unidos em 2001, no qual as fraudes fiscais e contábeis da empresa norte-americana de energia ocasionaram uma dívida de US$ 13 bilhões na época.
Cláudio Marson, Head de Consultoria Empresarial e Auditoria no Grupo IAUDIT, comenta que a realização de uma auditoria interna pode detectar as inconformidades em vigência, bem como, o ideal é que as organizações possuam um programa de Compliance estruturado e bem implementado e com adequada supervisão da Alta Administração, Conselhos e Auditores Internos e Externos.
Dessa forma, é possível minimizar o risco de irregularidades, intencionais ou não, especialmente em empresas com capital aberto, como a Americanas. “Uma corporação de grande porte certamente possui uma área de compliance e auditoria interna - que provavelmente se reportam ao Conselho e/ou ao Presidente, no entanto, em algumas ocasiões há necessidade de tornar o departamento cada vez mais efetivo, atuante e presente na rotina de todos os colaboradores”, afirma Marson.
As empresas listadas na bolsa de valores precisam divulgar o seu balanço publicamente, com todas as informações contábeis e gerenciais (notas explicativas, contas de compensação, etc) para os acionistas. Da mesma forma, auditorias devem ser recorrentes, assim como informes à CVM (Comissão de Valores Imobiliários) sobre a autenticidade e razoabilidade dos balanços produzidos.
Além disso, possuir um programa de Compliance é obrigatório para empresas de grande porte por lei. Segundo os artigos nº 56 e 57 do decreto anticorrupção nº11.129/22, a regulamentação pede que, de fato, o compliance seja colocado em prática e também deve ser continuamente revisado e atualizado.
Marson aponta que o canal de denúncias também é um requisito da regulamentação, sendo o meio apropriado para comunicação de possíveis irregularidades dentro de empresas, conforme art. 57 do decreto.
“As organizações, tendo ou não um programa de compliance estruturado, devem recorrer à especialistas para implantar ou adequar o seu programa ao novo decreto. Dentro disso, é sempre recomendada a busca por empresas com know how - teórico e prático - no assunto e que estejam atualizadas diante das exigências”, finaliza o Head de consultoria empresarial e auditoria no Grupo IAUDIT.