Num período em que o espectro do fascismo tupiniquim ronda o Brasil, as novas e velhas vivandeiras dos quartéis pregam o fim do regime democrático e os revisionistas de ocasião tentam minimizar os horrores do regime militar (1964-1985), chega em boa hora o novo romance do escritor baiano Ricardo Brugni-Cruz, Lua Nova de Fevereiro, publicado pela Appris Editora. Como o próprio autor define “é uma história de mar, de amor e de dor, de aventura e pescaria, que não é totalmente imaginária, pois há fatos narrados que parecem ficção”.
É muito mais. Trata-se de um acerto de contas com o passado, uma catarse em alto mar, uma vingança meticulosamente preparada contra um militar que comandava a tortura a presos políticos e até a execução de quem se opunha à ditatura militar. Na história, muitos anos depois, um homem se encontra frente a frente com o oficial que o torturou com eletrochoques nos testículos, espancamentos no pau de arara e toda sorte de humilhações para quebrar a resistência do preso.
O homem torturado é Alberto, ex-preso político que, com muita sorte escapou da morte quando, a bordo um helicóptero, era levado com outros companheiros para serem despejados na Baía de Guanambara nos chamados “voos da morte”. O algoz é o capitão de mar e guerra Mauro Santa Bárbara, chamado de “Santo”, pelo sádico costume de desfiar o rosário e rezar o terço enquanto comandava as mais bárbaras ações nos porões da ditadura.
Na juventude, Alberto e sua jovem mulher Helena trocam a Bahia pelo Rio de Janeiro em busca do sonho de fazer cinema. Numa brutal repreensão a um protesto defronte ao Palácio do Catete, onde, em 1954, o presidente Getúlio Vargas se suicidou (adiando com o gesto extremo o golpe militar por 10 anos), Helena é morta com um tiro e Alberto preso. Aí começa o calvário do aspirante a cineasta pelas masmorras do regime militar.
Familiaridade com o Mar
O reencontro entre o torturado e o torturador se dá anos depois, já num regime democrático que até hoje não removeu os entulhos da ditadura, o que muito contribuiu para a sensação de impunidade entre os esbirros do golpe e o crescimento de uma extrema direita ávida por uma nova ditadura tão ou mais feroz do que a quartelada de 64. O capitão Santo é o dono do barco pesqueiro Mar Bravio.
Com a ajuda de um amigo literato e pescador, Alberto consegue se infiltrar entre a pequena e experiente tripulação que parte para a pesca da caranha, “um tipo de vermelho gigante que anualmente frequenta as águas mais profundas e azuis do mar alto, bem longe da costa”. Os cardumes da caranha só aparecem durante os três dias da chamada Lua Nova de Fevereiro, “um risco de giz fluorescente, a navegar solitária no espaço” e que se assemelha à “uma pequena foice com lâminas abertas como se pretendesse colher estrelas”.
A pesca é um disputado troféu que confere a quem fisga o grande vermelho o diploma de pescador profissional. Depois da lua nova de fevereiro, as caranhas somem em busca de outras águas, levadas pelos insondáveis mistérios do mar. Na parte náutica do romance (quase todo o tempo, já que o passado entra com flashback) Ricardo Brugni-Cruz, que é médico psiquiatra e psicanalista e autor de cinco romances, demonstra todo o seu conhecimento de navegação e pescaria. Experiência própria ou fruto da leitura de Helman Melville (Moby Dick), Jack London (O Lobo do Mar), Ernest Hemingway (O velho e o mar), Julio Verne (Vinte mil léguas submarinas), Joseph Conrad (Juventude), e Jorge Amado (Mar Morto) autores citados no romance?
Essa familiaridade com o mar da Bahia e a pesca está mais próxima de outro escritor baiano, o contista Vasconcelos Maia, principalmente da memorável novela Cação de areia, uma história de amor e morte ambientada na Baía de Todos os Santos. Em Lua Nova de Fevereiro, para o dilacerado Alberto, depois da encerrado os três dais de pescaria falta a última e feroz caranha, o oficial da reserva da Marinha conhecido por Santo.
A bordo do Mar Barvio, o ex-preso político revive seu pesadelo, processo onírico assim descrito pelo escritor e psicanalista: “ocorrência que faz despertar o sonhador, porque coloca-o de volta ou o ameaça com a eminente repetição de uma realidade duramente vivenciada no passado, do real alguma vez sofrido, colocando-o diante de lembranças que o faz tomá-las como verdadeiras…”.
De fato, um pesadelo, iluminado pela breve lua nova de fevereiro.