Gina Marocci

A devoção ao Senhor do Bonfim e a urbanização de Itapagipe

Mais um ano sem a famosa Festa do Bonfim tão rica em manifestações de fé e da cultura baiana, que atrai pessoas de todo o Brasil e que encanta os estrangeiros que dela participam. Mas, deixe estar, dona pandemia, porque para o ano sai melhor! Com fé em Deus! Mas, vamos lá saber um pouco mais sobre a devoção ao Senhor do Bonfim e a sua influência na ocupação da Península de Itapagipe.

Festas em louvor aos santos padroeiros fazem parte da cultura religiosa católica desde a Idade Média e nelas sempre foram comuns as procissões, missas e folguedos que mesclavam os ritos religiosos com as manifestações populares de cada lugar.

A colonização portuguesa nos trouxe a religião cristã, a cultura popular, que se misturou às culturas indígenas e africanas e criaram-se, assim, novas tradições e manifestações populares.

As festas em louvor aos santos sempre tiveram o espaço da rua como lugar de afirmação de poder de uma religião sobre as outras, mas também como o ambiente da confraternização e da socialização que possibilitavam a participação de todas as camadas da sociedade.

A devoção ao Senhor Bom Jesus do Bonfim é uma tradição trazida de Portugal e existe em várias cidades brasileiras. Em Salvador, ela começou com a imagem de Jesus crucificado, um ex-voto de Theodózio Rodrigues de Faria, Capitão de Mar e Guerra, por uma graça alcançada.

A imagem chegou em 1745 e foi instalada em um dos altares da igreja de Nossa Senhora da Penha e Senhor da Pedra de Itapagipe de Baixo, também conhecida como Nossa Senhora da Penha de França, construída em 1743 pelo bispo D. Botelho de Mattos como capela do palácio de verão.

Ainda em 1745 oi criada a Associação de Devotos do Senhor do Bonfim, cuja primeira mesa administrativa foi composta predominantemente por homens moradores da cidade.

A Península de Itapagipe era uma região considerada rural, com poucas ruas, povoada por uma população pobre que se ocupava das atividades extrativistas e da pesca.

Os primeiros devotos ao Senhor do Bonfim foram, então, os moradores da península, ou seja, os homens do mar, pescadores, negros livres e brancos, pequenos comerciantes, e pessoas abastadas que vinham da cidade cumprir promessa por graças alcançadas.

Por causa dessa diversidade é que, desde o início, a Devoção ao Senhor do Bonfim se diferenciou das outras Irmandades que se organizavam por afinidade profissional ou pela cor da pele.

Rapidamente a devoção ao Senhor do Bonfim se espalhou pela cidade e pelo Recôncavo Baiano e a igreja da Penha já não comportava as romarias dos fiéis.

A Irmandade elegeu o sítio elevado, na parte mais alta de Mont Serrat, para a construção da igreja e das casas dos romeiros, erguidas com as esmolas depositadas nos cofres da Penha e com auxílio de outros soteropolitanos abastados.

Em 25 de junho de 1754, a imagem do Senhor do Bonfim foi transladada, em grande procissão, para a capela-mor da igreja inacabada. Apenas na segunda década do século XIX a igreja foi concluída.

No mesmo dia, a imagem de Nossa Senhora da Guia também foi colocada no altar-mor. Mas, o trajeto da cidade à península era uma grande penitência, pois era feito em parte pelo mar, com lanchas que aportavam em Água de Meninos, e seguia-se por terra em cadeirinhas de arruar ou em montarias, sendo que este percurso ficava sempre à mercê das marés.

Outra possibilidade era chegar pelos portos de Roma, da Boa Viagem, da Lenha e do Bonfim, ambos na atual Avenida Beira-Mar.

Além da dificuldade em chegar por mar, os caminhos que levavam à colina não tinham pavimentação nem qualquer urbanização. Assim era a estrada de Mont Serrat, bem como a ladeira do Porto da Lenha, que dava acesso a uma das laterais da igreja.

Com tamanha dificuldade de acesso, a Devoção empenhou-se em melhorar os caminhos para a colina. Ainda no século XVIII, construiu duas novas ladeiras: a do Porto do Bonfim, que dá acesso à parte dos fundos da igreja; e a Ponte da Pedra, mais conhecida como a Ladeira do Bonfim, caminho utilizado pelos romeiros que vinham de Roma e da cidade, que foi planificado e calçado.


Ladeira do Bonfim em 1859

Entre 1792 e 1798, a Devoção investiu na abertura de uma estrada que ligasse Roma à Ladeira do Bonfim, e como nela havia um tipo de palmeira, recebeu o nome de Avenida dos Dendezeiros. Na segunda década do século XIX, para facilitar mais ainda o acesso dos fiéis que vinham do centro da cidade, a Devoção construiu uma estrada que ligou o Largo de Roma à Calçada do Bom-Fim, e ao Noviciado dos Jesuítas (conjunto dos Órfãos de São Joaquim).

As estradas e ladeiras executadas pela Devoção foram construídas com drenagem, calçamento de pedra e arborização apenas com investimento vindo das doações.

Essas ações dinamizaram a ocupação da península, principalmente no verão, quando muitas famílias deixavam a cidade para veranear no arrabalde que tinha sítios e casas para acolher tanto os romeiros como os que vinham apenas descansar.

A festa, que acontecia em diferentes datas, passou a ocorrer em janeiro no segundo domingo após a Epifania.

Na véspera da festa havia a comemoração restrita nas residências, enquanto que o domingo era dedicado aos ritos dentro do templo. As novenas foram introduzidas a partir de 1803, sempre com muita afluência de público e pompa. As casas dos romeiros acolhiam as pessoas que vinham de Plataforma e do Recôncavo.

No adro da igreja, antes e depois da novena, grupos de músicos negros, a maioria africanos libertos, tocavam a chamada música de barbeiro, com instrumentos de sopro e de corda, enquanto jovens dançavam alegremente o que dava à festa uma conotação mais livre, de folguedo.

Aos poucos a colina recebeu melhoramentos como calçamento e uma contenção para a encosta que dá para a baixa do Bonfim.

A participação do povo negro também acontecia com a presença dos escravos que acompanhavam os seus senhores.


Largo do Bonfim com alguns melhoramentos, em 1875

As festividades em homenagem a Nossa Senhora da Guia e a São Gonçalo começaram no início do século XIX, o que fez o ciclo dessas festas durar 21 dias. O largo defronte à igreja passou a ser decorado com bandeirolas e a iluminação era reforçada. Barracas eram armadas junto à muralha para a venda de brinquedos, comidas e bebidas.

Nas primeiras décadas do século XIX começou-se a fazer da lavagem da igreja uma tradição, assim como acontecia em Portugal. Aliás, a limpeza da igreja incluía também a caiação das paredes, a pintura das janelas e a limpeza dos objetos do culto. A limpeza ocorria na quinta-feira anterior ao domingo de encerramento da festa ao Senhor do Bonfim.

Aos poucos outras pessoas foram se reunindo em grupos para participar da lavagem da igreja na quinta-feira como gratidão por uma graça alcançada. Com vassouras, potes e barris com água, vinham de todos os lugares da cidade e arrastavam outras pessoas no caminho.

O percurso era animado pelos músicos barbeiros, e a população chegava no largo do Bonfim entoando músicas alegres e dançando. Era uma festa de todos, ricos e pobres, livres e escravos.

Para saber mais

SAMPAIO, C. N. 50 anos de urbanização: Salvador da Bahia no século XIX. Rio de Janeiro: Versal, 2005.

SANTANA, M. C. de. Alma e festa de uma cidade: devoção e construção na Colina do Bonfim. Salvador: EDUFBA, 2009.

TAVARES, F.; CAROSO, C.; BASSI, F.; RAMOS, C. Inventário das festas e eventos na Baía de Todos os Santos. Salvador: EDUFBA, 2019.