Nesta, que foi a última entrevista concedida antes de se internar, o secretário de Saúde do estado, Fábio Vilas-Boas, disse que estamos vivendo o pior momento da pandemia no país.
E isso, porque a população não tem colaborado, principalmente os mais jovens. De acordo com Fábio, que está há 11 meses na minha de frente do combate à covid, a pandemia não mudou a cara. “Os jovens que perderam o medo”. E alerta. “É possível que precisemos avançar para fechar comércio durante o dia”. Confira:
Secretário, você está na linha de frente da pandemia há 11 meses e agora é acometido com a doença. O que muda ao se ver infectado?
É uma boa pergunta. Essa é uma experiência única que a gente passa. Onze meses tentando evitar, usando todas as medidas de prevenção, e logo agora, já perto da vacina, a gente acaba pegando. É um misto de frustração com sensação de impotência. A gente, ao mesmo tempo, fica preocupado com outras pessoas que também estão se contaminando, a gente não sabe se esse vírus que me pegou já é uma dessas variantes mais contagiosas, porque eu não relaxei nada. Foram onze meses fazendo tudo direitinho, e agora de uma hora para outra eu me contamino. Mas, felizmente, eu estou conseguindo atravessar aqui sem piorar, mas é uma batalha. É uma experiência única, porque você sabe que da mesma forma que você pode melhorar, você pode piorar. Isso é uma loteria. Além do mais, ao longo da minha vida de médico, fui treinado a colocar-me na posição dos meus pacientes, entender a sua condição a partir da sua perspectiva e, muitas vezes, vivenciar seu sofrimento. A compaixão é o mais nobre sentimento que um médico pode desenvolver. Como gestor público a compaixão me ajuda a tomar decisões todos os dias. Assim é que ao ser contaminado e viver na pele essa doença terrível, sinto-me mais perto de cada uma das pessoas que sofreram e estão sofrendo a dor da perda da saúde e o medo da morte.
Como você avalia o estágio atual da pandemia?
Nós estamos vivendo o pior momento da pandemia em todo o Brasil. No país inteiro, os hospitais estão lotados, nós estamos vendo a emergência de mutações que agravam a transmissão. A população não tem colaborado, principalmente os mais jovens, que hoje são a maioria dos que são diagnosticados e até internados. A população abaixo de 40 anos hoje já ultrapassa os 50% das pessoas internadas nas UTIs. E chegando ao ponto máximo hoje de aberturas de leitos, tanto de UTI quanto de enfermaria, não nos resta outra alternativa senão restringir a liberdade das pessoas de se locomoverem, de frequentarem os espaços. Se nós tivéssemos uma postura diferente, se as pessoas estivessem compreendendo que o momento de pandemia é grave e que não deveriam estar aglomerando, isso não seria necessário. Mas como não tem sido dessa forma, as medidas foram adequadamente lançadas e deverão ser agravadas na medida em que ou piore a situação dos hospitais, ou não surta o efeito que nós esperamos que surta com esse toque de recolher à noite. É possível que nós precisemos avançar para fechar comércio durante o dia.
Caminhamos para um lockdown?
O lockdown é um termo que não se aplica ao Brasil. O que a gente precisa fazer é, caso não surta o efeito, é fazer um fechamento mais intenso do comércio não essencial. Você se recorda que a gente passou um tempão com os shoppings fechados, tudo fechado. E hoje nós estamos mantendo os shoppings, o comércio aberto, e só está sendo fechado à noite. Se essa medida que começa hoje, sexta-feira, não der resultado em uma semana, a gente vai ter que sentar e reavaliar.
As eleições e as festas de final de ano se cruzaram e fizeram os números crescer. E a gente tem também o impacto do Carnaval, que não foi mensurado por conta do tempo, já que foi no último final de semana. Essa é uma situação bomba relógio, prestes a explodir, que preocupa, secretário?
Preocupa muito. Nossa análise retrospectiva mostra que 14 dias após esses eventos índices – São João, eleições, Natal, Réveillon, e agora o Carnaval – 14 dias depois nós subimos de patamar. E o que a gente viu no Natal e no Réveillon, a gente viu no Carnaval agora. Várias festas, várias em casas, em apartamentos… Essas festas aglomeraram pessoas, pessoas jovens, isso sem dúvida vai se traduzir sob a forma de maior contágio e maior necessidade de internação.
O que representa, na prática, o estrangulamento das redes públicas e privadas que está prestes a acontecer?
Representa o risco de aumentar a taxa de óbitos. Hoje nós conseguimos atender toda a população, ninguém fica para trás por falta de UTI.
Vamos chegar no estágio de ter que escolher quem vai viver e quem vai morrer?
Eu torço que isso não aconteça nunca. É por isso que nós estamos ainda abrindo mais leitos e fazendo essas medidas restritivas. Exatamente para que isso nunca venha a acontecer. Nós estamos andando um passo à frente para não ver aqui na Bahia o que aconteceu em Manaus. A medida do governador foi acertada, e outras medidas restritivas serão lançadas mão antes, preventivamente, para que não venha a entrar em colapso o Sistema de Saúde.
E o detalhe que mais da metade dos casos da Covid aqui na Bahia são de pessoas até 40 anos. O que esses números significam, secretário? A pandemia mudou a cara no estado?
Não, não foi a pandemia que mudou a cara, não. São as pessoas jovens que perderam o medo. Os idosos se mantiveram resguardados e os mais jovens, destemidos, corajosos, foram para a rua. Como a maioria tem sintomas leves, eles acham que vale à pena correr o risco.
Como você avalia o estágio atual da vacinação e a suspensão por falta de doses?
É lamentável que nós estejamos constatando que vivemos uma ilusão vacinal. A população acha que está sendo vacinada, quando na verdade nós estamos aplicando uma vacina numa parcela ínfima. Era para termos vacinado no primeiro mês 1 milhão e 800 mil pessoas na Bahia, só no primeiro grupo. E até agora nós só vacinamos cerca de 400 mil pessoas, apenas. E não há previsão de curto prazo de uma quantidade de vacina significativa. Na última quarta-feira, os governadores tiveram uma reunião com o ministro da saúde e ele apresentou um cronograma de vacinação. No dia seguinte, o Butantan desmentiu os números do Ministério. E na reunião com os governadores, o presidente do Butantan estava presente e ele não contestou os números apresentados. Então como é que você consegue fazer um mínimo de planejamento se quem é responsável pelo fornecimento principal da vacina no Brasil, que é o Instituto Butantan, não consegue numa reunião confirmar os números e nega, menos de 24 horas depois, depois de todos os governadores terem sido notificados? Nós estamos cegos, perdidos, não temos em quem confiar e acreditar.
Diante desse negacionismo do Governo Federal, o que fazer para solucionar a questão da vacinação em massa da população?
Eu não acho que tenha negacionismo, não. Eu acho que houve uma falha estratégica de tomada de decisão de aquisição de vacinas lá atrás. E isso está sendo difícil de corrigir. O Governo Federal deveria ter feito aquisições, contrato de compras grandes lá atrás, lá em agosto. Nós aqui da Bahia fomos e fizemos um compromisso de compra com os russos, mesmo antes de haver registros deles na Anvisa, em agosto. O Ministério poderia ter feito a mesma coisa com todos os fabricantes de vacina. Na verdade, deveria ter feito isso. E hoje a gente vê um cenário internacional em que os grandes fabricantes já estão com seus compromissos de produção com outros países e a gente está vindo para o final da fila, infelizmente.
O governo do estado entrou no STF para poder importar a Sputnik V. Em que ponto está essa negociação, secretário?
Está no STF. Tendo duas ações: primeiro, existe a ação nossa no STF; segundo, nós temos a ação que é a MP 1003 que foi votada no Senado há 15 dias, e nessa MP está aprovada a agência russa equiparada ao nível das agências principais do mundo. E ao fazer isso, o Senado diz à Anvisa que ela tem 5 dias para poder autorizar a Sputnik. Só que essa MP não foi ainda sancionada pelo presidente. Ele precisa sancionar ou vetar. Se ele sancionar, 5 dias depois a Anvisa será obrigada a autorizar a importação. Resolve o nosso problema. Se ele vetar, o clima no Congresso é que o veto será derrubado. Então mais cedo ou mais tarde, via Congresso ou via STF, nós vamos ter autorização para importação da Sputnik.
Nos últimos dias, o senhor começou um diálogo junto comgovernador muito mais intenso junto aos prefeitos na tentativa também de endurecer as medidas de enfrentamento à Covid. Como tem sido esse diálogo, secretário? Com os prefeitos.
Nós mantemos diálogo regular com a união dos municípios, com o conselho de secretários municipais de saúde, fazemos reuniões periódicas, no mínimo duas vezes por semana, para poder acompanhar a pandemia. Tivemos a transição no começo de janeiro, em que várias secretarias foram trocadas, 70% das secretarias foram substituídas. Entrou grande parte de pessoas sem nenhuma experiência, pela primeira vez. Nós treinamos esses secretários, tivemos um trabalho adicional de fazer a substituição com o carro andando, trocar o pneu com o carro andando. Isso determinou uma redução das notificações, já foi corrigido. Hoje os municípios estão funcionando adequadamente, as vacinas já estão sendo todas aplicadas. Eu acho que a relação do estado com os municípios nunca esteve tão boa.
A rede está pressionada pelas cirurgias eletivas e pelas outras comorbidades que começaram a demandar uma atenção por parte da população. Como conciliar essas duas demandas com o crescimento dos casos de Covid?
Não tem como conciliar. São competitivas. A gente ampliou o número de leitos Covid o máximo que pôde, suspendeu as cirurgias eletivas durante esse período, e temos agora que restringir a movimentação das pessoas para poder reduzir o número de acidentes de carro e moto que são a principal causa de internação nesses nossos hospitais. Eu acho que com o fechamento dos bares à noite, isso vai dar uma boa ajuda.
O que mais tem tirado seu sono e preocupado nessa fase atual da pandemia, secretário?
A maior preocupação nossa é não saber como será o futuro. A gente se prepara para o pior, mas torce para o melhor. A gente não sabe se a qualquer momento vai surgir uma outra mutação que vai tornar o vírus mais agressivo, nós não temos mais folga de leitos, gordura para poder queimar. Nossa última reserva, que é a Fonte Nova, essa semana já vai ser reaberta. Depois que isso for aberto, só nos restará ir avançando para os leitos não Covid dos hospitais. E as outras doenças vão ser cada vez mais impactadas pela pandemia.
Há algum tipo de controle sobre possíveis variantes que estejam circulando na Bahia? Tem algum diagnóstico mais preciso sobre isso?
Nós fazemos um monitoramento genômico regularmente. Nós temos um sequenciador no Lacen, adquirimos um outro. Nós diariamente estamos fazendo um acompanhamento dessas emergências de mutações. Por enquanto não tem nada de anormal.
Tem alguma previsão de investimento maior para fazer uma testagem em massa da população? Facilitar o acesso à testagem?
Não. Trabalhando com o Lacen na sua capacidade máxima. E não há nenhuma razão nesse momento para fazer testagem em massa. Nós temos que garantir o teste para quem tiver sintomas e for para as UPAs. Nós adquirimos testes de antígeno nasais que dão resultado instantâneo, isso tem ajudado a qualificar nossas internações.
Mesmo sendo médico, o senhor recusou-se a ser vacinado antes dos servidores da SESAB. A que se deveu isso?
O meu papel como gestor é o de dar exemplo. Embora eu estivesse na lista de vacináveis, por ser médico e ainda atender em consultório, minha maior atividade, não resta dúvida, é como gestor público. Diante da escassez das vacinas, fui contra funcionários da administração centralizada da SESAB receberem a vacina antes da população geral de idosos de maior risco. Coloquei-me ao lado dos servidores, para que soubessem que seu chefe só seria vacinado junto com eles e que poderiam confiar em mim.