Cassiano Antico

Estamos em meio ao milagre da vida (mesmo quando de luto)

Talvez seja porque o mistério do nosso mundo não seja a morte


Foto: Pixabay/Creative Commons

 
Não viver é o que mais cansa
-- Autor desconhecido

Minha coluna Papo de Pai voltando de férias. Como é bom estar aqui com vocês. Mas pai não tira férias, né? Ainda mais no momento que estamos.

O texto que li ainda há pouco começava assim: "As melhores coisas da vida não são coisas.” A mais pura verdade. Um recado pertinente e que me faz refletir.

Desisto de falar sobre "A Náusea", de Sartre (e de tudo que ele plagiou desde a infância para agradar o avô), ou sobre "O Profeta", de Khalil Gibran, ou "O Idiota", de Dostoiévski. Penso no desenho que acabo de receber de minha filha. Penso que milagre não é caminhar sobre a água ou transformar água em vinho. Milagre é dividir o copo. Milagre mesmo é aceitar o próximo como ele é. Milagre é ser bom.

Passei o dia - mais precisamente, dias -  esquisito.

Foi Lutero quem disse que os sinos tocam de modo muito diferente do normal quando morre um amigo. Na verdade os sinos não tocam coisa nenhuma. Os sinos se calam. O que fica é essa sensação de um sujeito amputado. A gente não tem mais aquela perna, pé, orelha, e sente a presença daquela perna, pé, orelha. E quando percebe, quando olha com sinceridade, com honestidade: é só um vazio agudo.

Olhei para fotos no feed de noticias e vi amigos nela. Parei, prestei atenção e notei que vários já morreram num curto espaço de tempo. Tem sido um luto em cima do outro. O mundo sofre...

Hoje entendo amigos que só andam de preto. Eu tenho me vestido de preto. Como na canção de Johnny Cash. Tentarei retirar um pouco da escuridão das minhas costas. É mais fácil, poxa. Logo haverá algum programa que vai marcar os vivos e os mortos nas redes sociais.  Um x, algo no meio do alvo. 

Fui levar minhas filhas para a escola e elas quiseram ir andando. Elas vão  reparando em tudo. Elas estão presentes no próprio corpo, reparam no mundo. E me vesti com a pele de uma criança, eu tentei. E eu... Eu quase dancei. Minhas filhas riram. Pareciam se divertir com o meu jeito bobo e desajeitado. E dançaram com graça.

Testemunhei o milagre da vida. E, na volta, depois de um dia cheio (para mim e para elas), Isadora  dormiu. Ao chegar no prédio, não quis acordá-la. Eu a segurei em um braço (abraçada a mim) e levei seu material escolar com o outro, subindo os degraus do prédio devagar, para não atrapalhar o seu sono sagrado.  Ela estava usando um gorro de carneirinho. Coloquei-a no sofá. Pude sentir os lábios quentes e doce da minha esposa.

E me lembrei de um homem à beira da morte. Enquanto todos o consolavam no quarto do hospital, ele pediu para ver um bebê que passou no colo da mãe pelo corredor. Ele estava sendo consumido pela morte mas quis ver a criança e sentir o seu cheiro antes de partir do nosso mundo - seu último desejo.

Eu me perguntei tantas vezes o motivo. Talvez seja porque o mistério do nosso mundo não seja a morte. O grande mistério aqui é a vida. A vida! O nascimento de minhas filhas, o dia a dia, a vida que vivo com minha mulher, amigos. Inclusive as cagadas que fazemos e nos redimimos, e vamos avante. E até mesmo as coisas que nos envergonhamos imensamente de sentir, como a inveja, ou o ressentimento, ou ainda coisas mais destrutivas e que guardamos a sete, a setenta mil chaves. E que algo nos bate na cara e nos dá a sensação de completa derrota, humilhação. Mas ainda assim: insistimos. E vamos em frente! E encaramos o próximo round, com ossos quebrados, gosto de sangue na boca, mas de cabeça erguida.

Só pode ser milagre, né?