Cassiano Antico

A noite em que chorei com meu pai (e uma canção)

Sunshine
Foto: Jonathan Petersson/Pexels/Creative Commons

Minha mulher dormiu e fiquei com minhas filhas. Elas pediram para rezar a oração do anjo da guarda antes de deitarem. "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou a piedade divina, sempre me rege, guarda, governa e ilumina. Amém".

Isso trouxe uma paz indescritível ao ambiente. E elas dormiram rapidamente. E, olhando para seus rostos serenos, lembrei-me de quando eu era criança. Eu devia ter uns 7 anos. Certa madrugada acordei, fui até a sala de televisão. Existiam poucos canais naquela época. O pai tinha acabado de voltar de mais um plantão. Ele trabalhava muito. Médico, cinco filhos para criar; não devia ser fácil. Mas nunca vi o pai reclamando. E ele estava lá assistindo "Corujão", sozinho, todo de branco - sua roupa de trabalho. Perguntei se podia ficar com ele; ele assentiu com a cabeça.

Fiquei contente por poder ficar com o pai. Peguei o filme já no meio. A história, pelo que posso me lembrar, girava em torno de um casal apaixonado. Mas de um jeito intenso; num formato impetuoso, profundo, descontrolado. O cara não era rico. Mas era um bom homem. E a garota começou a sair com um sujeito bem sucedido para dar um upgrade. Achei que ela fosse ficar feliz, né? Mas a garota parecia um vulto triste.

Perguntei pro pai o motivo. Ele me disse: "Acho que ela não ama esse sujeito, filho".

Continuei perguntando. No fim, ele disse olhando nos meus olhos: "Eu não sei. Gostaria de saber para te contar".

Aquilo, estranhamente, me aliviou. Talvez pelo fato de o pai ter sido verdadeiro, sincero comigo. E a vida da gente é cheia de mistérios, né?

E, no final do filme, quando a moça bonita estava indo embora com o cara ricão - o homem que ela amava de verdade aparece -, cantando "You are my sunshine". Eu não sabia o que a letra queria dizer, ainda. Quando percebi,  estava chorando.

E a protagonista  acabou ficando com o homem que amava e deixou o ricão com seu cabelinho escovado falando sozinho. Olhei pro lado... Dos olhos do pai também escorriam lágrimas. Fingi que não vi para ele ficar à vontade comigo. E me lembro que senti vontade de olhar pro céu naquela noite, mas fui pro quarto. Achei que não devia pedir mais nada.

Meus irmãos dormiam profundamente. Deitei na cama e fiquei imaginando o céu, na minha cabeça. O céu. Tão grande. Tão longe. Tão bonito. Até que dormi.

O céu está todo estrelado agora enquanto velo o sono de minhas filhas. E só pelo fato de minhas filhas existirem prova que o mundo tem sentido.

Que sentido eu poderia encontrar apenas nos suplícios dos filósofos infinitamente atormentados, para quem tudo se reduz ao nada e o sofrimento faz a lei deste mundo? Eles nunca se entregaram a uma canção como "You are my sunshine"; nunca ouviram a oração e muito menos a risada de uma criança;  não sabem o que é a lealdade de um cão; nunca perdoaram e nem pediram perdão; nunca amaram ninguém; nunca perceberam que um único raio de sol pode nos libertar.

No vídeo
You are my sunshine
[Você é meu raio de sol] (legendado)