Segurança

Uma mulher é morta a cada 9 horas no Brasil durante a pandemia

Foram 497 casos de feminicídio reportados entre março e agosto

Foto: Karolina Grabowska/Pexels/Creative Commons

São Paulo, Minas Gerais e Bahia lideram

Era manhã, em Paragominas, região sudeste do Pará, quando Fátima Gomes, 36, caminhava com a filha no colo e foi morta pelo ex-companheiro. Também era dia quando, no município de Abaetetuba, nordeste paraense, Andreza Vilhena, 22, ia para a academia e teve sua vida interrompida a mando do ex-namorado. Já em Várzea Grande, no Mato Grosso, não se sabe ao certo em qual horário Orany dos Santos, 28, perdeu a vida, pois seu corpo foi encontrado apenas quatro dias depois em um matagal.

Fátima, Andreza e Orany são apenas três nomes, de 497 mulheres que perderam suas vidas desde que a pandemia do novo coronavírus começou. Foi um feminicídio a cada nove horas entre março e agosto – com uma média de três mortes por dia em seis meses de pandemia.

São Paulo, com 79 casos; Minas Gerais, com 64; e Bahia, com 49 foram os estados que registraram maior número absoluto de casos no período. No total, os estados que fazem parte do levantamento registraram redução de 6% no número de casos em comparação com igual período do ano passado.

A atualização, revelou que, entre maio e agosto, foram mais 304 casos de feminicídio, 11% a menos do que o mesmo período de 2019. Os dados são do segundo monitoramento ‘Um vírus e duas guerras‘, feito por parceria entre sete veículos de jornalismo independente, que visa monitorar a evolução da violência contra a mulher durante a pandemia. O primeiro levantamento da série, divulgado em junho, mostrou que nos meses de março e abril, quando iniciou o confinamento da população por causa do vírus, 195 mulheres foram mortas em 20 estados.

O segundo monitoramento, como no primeiro, analisou os dados pelo número da população feminina desses 20 estados. O índice médio do País foi de 0,34 feminicídios por 100 mil mulheres. Portanto, 13 estados estão acima da média: Mato Grosso (1,03), Alagoas (0,75), Roraima (0,74), Mato Grosso do Sul (0,65), Piauí (0,64), Pará (0,62), Maranhão (0,47), Acre (0,44), Minas Gerais (0,43), Bahia (0,39), Santa Catarina (0,38), Distrito Federal (0,37) e Rio Grande do Sul (0,34).

A taxa proporcional das mortes no Pará, que tem uma população feminina de 4,3 milhões pessoas, é de 0,62 feminicídios por 100 mil mulheres no segundo quadrimestre do ano, colocando-o na sexta posição nacional do ranking de 13 estados com mais crimes por ódio contra a mulher.

A queda, no entanto, não é um indicativo real de diminuição da violência. Somente 20 estados enviaram os dados solicitados. Os sete estados que não divulgaram todos os dados, de março a agosto de 2019 e 2020, são: Amazonas, Amapá, Ceará, Goiás, Paraíba, Paraná e Sergipe. Além de não enviar todos os dados, o Amazonas não autorizou uma entrevista com a delegada que coordena o recém-criado Núcleo de Feminicídio da Polícia Civil. É ineficiente também nas estatísticas dos estados os dados sobre raça, etnia, orientação sexual e escolaridade, o que impede de fazer um perfil da mulher que morre todos os dias por feminicídio no Brasil.

A professora-doutora, antropóloga e criadora do Observatório da Violência de Gênero da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Flávia Melo, critica a ausência de dados sobre a violência doméstica e feminicídio, problema que, segundo ela, se arrasta desde o início da pandemia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a pandemia do coronavírus no mundo em 11 de março: “É bem complicado para a investigação científica e o jornalismo esses silêncios e interditos, baseados no sigilo (da informação) e na ausência de respostas”. Essa postura, disse a professora, é coerente com o que acontece no País.

“Se a gente tem delegada ou delegado proibidos de falar, relatórios da SSP não disponíveis, temos um fosso que não nos permite sequer quantificar, imagina descrever essas mulheres e acusados envolvidos nessas denúncias. Essa negligência observada em diferentes níveis da segurança pública revitimiza as mulheres”, afirma Flávia Melo.

Especialistas destacam a questão da subnotificação, uma vez que ainda há confusão entre feminicídio e homicídio de mulheres. “É apressado dizer que a violência contra mulher diminuiu baseado no feminicídio, que expressa a falência total do sistema. Além disso, os números de tentativas de feminicídio seguem em alta e, embora o feminicídio seja o crime menos subnotificado, podemos afirmar que há sim subnotificação. A tipificação é muito recente e feminicídios podem ser caracterizados como homicídios. O que podemos afirmar, de fato, é uma redução pontual das notificações”, explica Télia Negrão, conselheira diretora da Rede Feminista de Saúde.

Para ficar mais claro: feminicídio trata dos assassinatos de mulheres em que o fato de serem mulheres foi fator essencial no crime, já o homicídio de mulheres registra mortes não ligadas a questões de gênero, como mortes em assaltos ou outras formas de violência.

Em Santa Catarina, por exemplo, enquanto os dados apontam uma queda de 14% nos feminicídios em relação ao período entre março e agosto de 2019, o número de homicídios de mulheres catarinenses aumentou 12% em relação ao ano passado.

“Há uma resistência em se admitir o feminicídio e às vezes é catalogado como homicídio. Na maioria dos casos, se for investigar seriamente, chega-se a um feminicídio justamente pela condição de ser mulher”, pontua Renata de Castilho, presidente da Comissão de Combate à Violência Doméstica da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina (OAB/SC).

Sete estados têm aumento no feminicídio

Doze estados registraram queda dos números absolutos de feminicídios entre março e agosto, representando uma redução de 23% em relação ao mesmo período de 2019. Rio Grande do Sul e Distrito Federal foram os que mais contribuíram com a diminuição. Por outro lado, em sete estados houve aumento de 23% (38 mortes) em relação ao mesmo período do ano anterior. Pará e Mato Grosso encabeçam o aumento: 15 e 10 mortes respectivamente.

De março a agosto, o País registrou uma taxa de feminicídios por 100 mil habitantes mulheres de 0,56. Doze estados, que juntos somam 49% da população feminina do total analisado, tiveram taxas acima desta média nacional e foram responsáveis por 67% das mortes (331 feminicídios). Entre os que tiveram maiores altas estão Mato Grosso (1,72), Acre (1,32) e Mato Grosso do Sul (1,16).

Além da ausência de respostas de alguns estados, o levantamento encontrou também como barreira a falta de uniformização dos indicadores usados pelas Secretarias. Poucos estados trouxeram informações sobre raça, orientação sexual ou identidade de gênero, por exemplo, o que acaba por invisibilizar a violência.

No Espírito Santo, por exemplo, onde a capital Vitória é o único município com 100% do seu território na área urbana, todos os outros têm um pé no campo e outro na cidade, a violência contra a mulher do campo é totalmente invisibilizada. De março a agosto, morreram dez mulheres vítimas de feminicídio no Estado. Quantas dessas mulheres eram do campo? Ninguém sabe. Não existe estatística sobre a violência doméstica contra a mulher do campo.

“Não conseguimos fazer este recorte corretamente porque aqui no Espírito Santo, por exemplo, praticamente todos os municípios têm simultaneamente áreas no campo e na cidade”, comenta a delegada Michele Meira, da Gerência da Mulher da Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp).

A invisibilidade também afeta as mulheres trans e travestis assassinadas no Brasil, país recordista desse tipo de crime. O transfeminicídio não é considerado nas estatísticas oficiais. “O transfeminicídio é um feminicídio, mas não é um feminicídio pela mesma razão, não é o mesmo tipo de ódio que seria um feminicídio contra uma mulher cis. Cunhar essa categoria é essencial para entendermos melhor o fenômeno, para descrevê-lo e para atender melhor essas vítimas. Não é a mesma coisa atrelar o transfeminicídio apenas à cultura da misoginia, existe ali uma transmisoginia”, explica o pesquisador Dennis Pacheco, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Já em Minas Gerais, o racismo mostra sua cara em forma de estatística: 61% das vítimas de feminicídio são negras. A maioria, 51%, não concluiu o ensino médio e 70% têm de 18 a 44 anos. Os feminicídios, no segundo quadrimestre deste ano, se mantiveram no mesmo patamar do ano passado, mas os casos de violência doméstica aumentaram 2,7% e o desrespeito a medidas protetivas, de julho para agosto, cresceu 22%.

“Discutir violência de gênero sem a perspectiva de raça é ignorar a história escravista e colonial do País que violenta até hoje as mulheres negras”, afirma Ayala Santerio, coordenadora do N’zinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte e da Articulação de Mulheres Negras do Brasil.

Mesmo assim, 12 estados não coletam informações sobre a raça das vítimas: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro.

Mato Grosso, na região centro-oeste, é o Estado com a maior taxa de feminicídio a cada 100 mil mulheres durante a pandemia. Entre março e agosto, foram registrados 30 casos de feminicídio. Outro dado alarmante no Estado é o aumento dos casos de feminicídio nas áreas rurais. Foram quatro mortes registradas entre maio e agosto deste ano. Em 2019, não houve casos em regiões remotas. Já Mato Grosso do Sul tem a terceira maior taxa de feminicídio do País no período entre março e agosto. A federação registrou 1,16 casos a cada 100 mil habitantes mulheres. No Distrito Federal foram 8 mortes entre março e agosto, uma queda de 56% em relação ao mesmo período do ano passado.

O Rio de Janeiro e Espírito Santo ficaram entre os 12 estados que reduziram a taxa de feminicídio nos primeiros cinco meses da pandemia no Brasil. A partir de maio, quando o isolamento social foi sendo cada vez mais flexibilizado, o feminicídio voltou a subir no Rio de Janeiro, o que levou o Estado a registrar uma alta de 13% no segundo quadrimestre do ano. Os episódios de violência doméstica contra a mulher continuam crescendo nos dois estados durante a pandemia, ainda que os especialistas no tema confirmem que a subnotificação de casos segue firme e forte.

Mergulhar nos indicadores de violência doméstica contra a mulher é descortinar diferentes realidades. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, se a mulher for uma moradora de favela, improvável que a Patrulha Maria da Penha entre na comunidade onde a vítima reside. É que a Patrulha Maria da Penha, a quem cabe fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas de urgência, não é bem-vinda nos territórios dominados por um poder paralelo, seja o tráfico ou a milícia.

“O problema não está na Lei Maria da Penha, mas na ausência de políticas públicas que assegurem a segurança dessas mulheres, que vivem em territórios conflagrados”, analisa Marisa Chaves, coordenadora licenciada do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida, vinculado a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Conforme levantamento do Portal Catarinas, nos primeiros seis meses de pandemia pela Covid-19, isto é, de março a agosto deste ano, o Rio de Grande do Sul é o Estado que mais apresenta casos de feminicídio no Sul do País. Ao todo, 42 meninas e mulheres foram mortas por suas condições de gênero. Se comparado o número de feminicídios com o de habitantes do gênero feminino de cada Estado, a taxa de feminicídio do Rio Grande do Sul é de 0,71, de Santa Catarina 0,68, do Paraná 0,61. Já no segundo quadrimestre, de maio a agosto de 2020, houve uma redução pontual dos casos.

Em Santa Catarina, uma mulher é vítima de feminicídio a cada semana na pandemia. De março até agosto, o Estado contabilizou 25 mulheres assassinadas por seus companheiros. Apesar da grande quantidade de casos, as taxas apresentam queda de 14% na comparação entre o primeiro e o segundo quadrimestre. Em contrapartida, o número de homicídios femininos entre maio e agosto deste ano aumentou em 12% em relação ao mesmo período de 2019. Entre as vítimas, sete eram pretas, duas a mais do que no ano passado.