Em um tempo de muita escassez de escolas, num interior que nem constava do mapa, havia dois velhos professores locais que ensinavam matemática.
O professor Kilica, que morava numa rua conhecida na época como Beco do Mundico e o professor Manoel Honório, um pouco mais velho, que morava na mesma rua que eu, mas bem mais para baixo perto da lagoa, próximo ao pé de mulungu da oficina de meu avô. Até onde me lembro, se não me trai a memória, eram professores particulares e as aulas eram só para os meninos.
Lembro que só meus dois irmãos mais velhos estudaram com eles. Eu, não. Até que eu queria, mas meu pai não me permitiu porque, segundo ele, só tinha meninos na classe.
Vou fazer um aparte aqui porque Noêmia me pediu para falar do professor Dionísio, outro velho professor de matemática que chegou mais tarde na cidade, vindo não lembro de onde. Sei que era mais novo que os dois locais, morava na casa da Nilza de seu Quindô, uma casa atrás do motor da luz, que era acionado por meu pai, e talvez por isso o professor Dionísio e meu pai tenham ficado tão amigos.
Não lembro do velho Dionísio como professor, mas por certo, e por costume da época, usava a mesma metodologia que os outros dois. Era como era!
Mas diziam que entre outros castigos botava os rapazes para contar até mil. Kkkkk! Que ele era um craque em matemática, isto se sabia. Diziam até que era um gênio.
Mas o que realmente me lembro é da figura pitoresca do professor Dionísio: era uma figura marcante de hábitos esdrúxulos e muito reservado. Era pacato, desconfiado, andava contando os passos e quando parava tinha os movimentos calculados.
Não era gordo, mas tinha um aspecto meio arredondado. Andava sempre de boina e tinha a cara raspada.
Além da barba e do bigode que raspava, raspava as sombrancelhas, raspava as narinas, raspava os ouvidos, raspava o sovaco; dizem que raspava até as vergonhas. Não sei. Nunca vi.
Sei que era um senhorzinho vaidoso, com uma aparência meio europeia, e realmente vivia de boina com a carinha rechonchuda lisa, e azulada pela marca dos pelos raspados. Era um ser, por opção, literalmente pelado - dizem as más línguas -, pelado de cabo a rabo.
Tinha uma filha da minha idade, eram só os dois, e sempre que ia visitar meu pai a levava com ele. Aliás, ele a trazia literalmente em rédeas curtas.
Noemi era uma garota bonita e espevitada, uma ninfeta a despertar interesses, e a rapaziada, mesmo cuidadosa com o pai, vivia em alvoroços a espreitar a casa.
Outra coisa que nunca vi, mas ouviu-se muito dizer, e ela confirmava, é que ele a tratava como um prisioneiro em cativeiro. Mantinha-a trancada na cozinha durante as aulas para que não visse os alunos e estes não a vissem.
E quando lhe impingia um castigo, era cruel!
Quando saía sozinho, soube-se, a boca pequena, que a deixava trancada com os tornozelos amarrados por cordas, pendurada na cumeeira da casa de cabeça para baixo.
Essa, infelizmente, e segundo ela mesma, era a única forma de ele se sentir seguro de que a traquina não conseguiria se soltar. Muita loucura! Loucura! Loucura!
É tudo o que sei sobre o professor Dionísio e todos lembramos dele com carinho. Noemi, saudades de você minha querida. Por onde estiveres receba o meu abraço carinhoso.
A casa do professor Kilica dividia ao meio a distância entre a minha casa e a casa do professor Manoel Honório.
Era o tempo da decoreba, dos castigos e da palmatória...
Sexta-feira era dia de argumentação da tabuada!
Não havia essa de prova escrita, múltipla escolha, de marcar xiszinho não. Era prova oral mesmo. Ali no duro, na seca, no cara-a-cara com o professor.
O aluno era chamado a ficar de pé junto ao professor, em frente aos colegas, em posição de sentido - se conseguisse se manter firme e corajoso-, para uma verdadeira inquisição. Ou humilhação. Tremia feito vara verde no corpo e na alma.
Na sexta-feira, dia de argumentação da tabuada, ao entrar na sala, que era a própria sala da casa do professor, os alunos tomavam seus lugares e se encolhiam nas cadeiras desejando desaparecer.
O professor chegava, puxava a gaveta da mesa, tirava a palmatória e a colocava sobre a mesa num movimento ameaçador.
Esse gesto, por si só, já era tortura suficiente para os alunos ativarem um branco no cérebro, por mais brilhante que fossem.
Mesmo os mais preparados, com a lição decorada na ponta da língua, tremiam e davam branco. Era o pânico!
E as aulas começavam assim todos os dias. Essa era a saudação do professor. Quando não era a palmatória, era um punhado de grãos sobre a mesa.
A resposta, claro, era o maior encolhimento dos alunos a se remexerem nas cadeiras. Cada um torcendo para ser o último, ou quem sabe ser esquecido, mas não tinha refresco.
Aquele tormento era democrático e cabia a todos igualmente.
Ficar pra último, em vez de acalmar, só aumentava a angústia e demandava mais tempo para desarranjar o psicológico, e consequentemente, os intestinos.
De cabeça baixa se entreolhavam por baixo dos olhos, em cumplicidade, pois já sabiam o que vinha pela frente.
O castigo diário era os joelhos em grãos de milho, de feijão ou no sal grosso, lá na frente ao lado do professor e na frente da turma.
E era como a penitência: o padre dá a penitência conforme o pecado. Ali também: a quantidade de grãos em cada joelho - que ia de um a três caroços deitados ou com o olhinho pra cima -, dependia do quanto o miserável errava a lição.
Mas dia de sexta-feira não!
Sexta-feira não tinha milho nem sal. Não se usava grãos.
Sexta-feira era o dia da argumentação da tabuada!
Era a prova dos nove!
Era o dia exclusivo da palmatória!
Lembro que eu e duas amigas tínhamos ponto marcado na sexta-feira à tarde debaixo da janela de seu Kilica só pra ver o bolo comer. kkkkk!
Desculpem pelo kkkkk, não é por sadismo não. A gente apenas se sentia vingadas do que nossos irmãos mais velhos nos faziam. E ríamos mesmo com satisfação de cócegas! A cada bolo a gente se encolhia lá fora, se espremia embaixo da janela disputando espaço e rindo baixinho.
E começava: “Zezinho!” Levantava sem vontade e já se dirigia pra mesa. 1+1? 2; 2+1? 3; 9+1? 10. Noves fora?........... Hum!!!!? Kkkkk! Este foi salvo pelo gongo.
“Joãozinho!” Lá se vem Joãozinho pisando em ovos. 3x1? 3; 3x2? 6; 3x9? !!!!!!!?, 3x9? !!!!!!? Bolo! Aiaiaiaiai... Bolo! Aiaiaiaiai...
Enquanto esfregava a mão na coxa, ou do quadril para a nádega num vai-e-vem frenético, com a mesma velocidade em que os pés saltitavam, a outra mão já estava na palmatória.
À medida que as casas da tabuada iam ficando mais difíceis, neguinho ia se apertando mais, se encolhendo mais e o couro ia comendo mais.
“Ontõoe!” Este último, coitado, já ia para a mesa se escorrendo pelas pernas da calça curta e, é claro, que ali, a tabuada decorada já tinha se escorrido junto.
A humilhação desses alunos só não era maior porque o castigo era aplicado a todos. Mesmo a quem se salvava, uma hora ou outra teria a sua paga.
E não ria da desgraça alheia porque a sua hora, uma hora pode chegar!
Em nome desse tempo lhes suplico: não queiram isso de volta para os nossos filhos ou para os nossos netos.
Àqueles mestres, que cumpriram com desvelo a sua missão, da forma que lhes foi dado cumprir, fica o nosso carinho, a saudade, o nosso respeito e a nossa gratidão.
Boa semana a todos, boa reflexão e até domingo, se Deus quiser.