Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 18 (ou 18ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora:  se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente: antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Minha irmã gêmea começou a semana mais indignada do que nunca, por causa das declarações de alguns políticos intersanatoriais sobre a pandemia.

Ela contou que o ministro de finanças do sanatório japonês tinha pedido para que os idosos se apressassem em morrer, pra o escritório central deles não ter que pagar pensão; e que o vice-governador texano tinha apelado aos avós pra que se sacrificassem, pra salvar a economia e não paralisar o manicômio norte-americano.

Tentei contemporizar, explicando que a perspectiva deles era a da economia, e que...

Mas quer saber?

Eles que vão se... peidar n´água pra ver bolinha subir!

Pronto, pensei!

***

Terça-feira. Acordei e dei de cara com Piti deitada ao meu lado, me encarando fixamente.

Só não dei um pulo da cama porque a expressão dela não era agressiva, era tipo reflexiva, sabe?

Aí, perguntei por que ela tinha vindo pra cá tão cedo, e tava me olhando daquele jeito.

Ela respondeu que era porque tinha começado a fase de testes em humanos das vacinas contra a Covid, e que os mais vulneráveis do sanatório iam ter prioridade.

Fiquei matutando que isso não era motivo pra preocupação. Ao contrário, era pra ela estar dando pulos de alegria...

Mas a pessoa parecia ler minha mente, porque antes mesmo de minhas dúvidas se completarem, ela ia esclarecendo, como se estivesse conversando com ela mesma!

— A prioridade de uso dos respiradores era dos mais jovens, né?

— E por que vacina em fase de testes é prioridade dos mais velhos?

— Respirador não tem efeito danoso. Ao contrário.

— Já vacina feita nas carreiras, e em fase de testes...

Dessa vez, foi ela que não completou o pensamento.

Mas... não é que conseguiu colocar uma pulga atrás de minha orelha meu neurônio esquerdo?

***

Quarta-feira. Já repararam que meus dois calos deram pra se reunir em meu quarto quase toda semana?

Então... nessa não foi diferente. Chegaram juntinhas e começaram outro jogo de perguntas e respostas sobre a pandemia.

Proposta: a partir da experiência no sanatório, nomear — ou renomear — costumes, linguajar, características físicas, setores da vida social...

E como da outra vez, uma perguntava, outra respondia, alternadamente.

— Principais etnias?

— Infectados e não-infectados.

— Fenótipo dominante?

— Orelhas de abano, nariz chato...

— Tendência da moda?

— Vestes amarrotadas.

— Sistema político vigente?

— Mitocracia.

— Distúrbio mental prevalente?

— Idiopatia.

— Seita emergente?

— Terraplanismo.

— Tempo verbal mais conjugado?

— Pretérito imperfeito (era, tinha, saía...).

— Substantivo preferido?

— Limpeza.

— Mentalidade oficial?

— Higienista.

— Política pública em operação?

— Eugenia.

— Verbo mais usado?

— Matar...

Nesse ponto eu tive que interferir, porque a meu ver, o verbo mais usado não é matar, é morrer, né?

Falei e fiquei em estado de alerta, porque não tava a fim de levar bordoada... 

— Sabe fazer conta não?

Nem pisquei...

— Tem 85 mil mortos no sanatório, certo?

Fui saindo de perto bem de fininho...

— E tem 4 milhões de cloroquina estocadas pra enfiar goela abaixo dos infectados!

Como eu não tava infectada, fiquei mais tranquila...

— O verbo matar prevalece ou não?

Me enfiei debaixo da cama e esperei o desfecho.

Só que elas foram embora!

Me deitei, mas fiquei fritando na cama até o dia raiar...

Aí, descobri que tava com uma pulga atrás da orelha do neurônio direito também!

Haia, Haia, Haia... Ai, ai, ai...

***

Quinta-feira. Sandra me ligou pra compartilhar as últimas notícias sobre o sanatório espanhol.

Contou que pesquisas recentes demonstram que mais da metade dos internados por causa do coronavírus desenvolveu problemas neurológicos por lá.

As sequelas são de arrepiar: dores de cabeça, insônia, irritabilidade, ansiedade, distúrbios de movimento, convulsões, acidentes vasculares, depressão, transtorno de consciência, psicose...

Os neurologistas dizem que ainda não sabem exatamente o porquê das afecções, mas a teoria oficial é a de que o vírus está atacando diretamente o cérebro!

Eita!

Será que o que tá atrás de meus dois neurônios não são pulgas?

Agora fiquei na maior nóia...

***

Sexta-feira. Passei a noite em claro, pensando na invasão dos cérebros pelo vírus, e fui dividir a angústia com Piti, pra ver se desencucava.

— Você tomou cloroquina?

Claro que não tinha tomado, né?

— Todo mundo sabe que o que provoca esses efeitos é a cloroquina!

Não consegui captar o sentido do link que ela fez com os dados da investigação, mas nem deu tempo de questionar.

— E a pesquisa foi feita com quem ficou hospitalizado, confinado...

Fingi que tinha entendido, pra não dar uma de lerda, mas voltei pro meu quarto e fiquei ruminando, na maior dúvida se ela tinha me tranquilizado ou me preocupado mais.

Que eu saiba, só quem toma essa porcaria por vontade própria é o chefinho do sanatório. E ele já anda até conversando com ema...

Eu só tomo os anti-insurreissivos calmantes que os médicos me dão... acho...

Lá pra meia noite eu consegui dar um cochilo, mas daí as orelhas os neurônios começaram a pinicar de um jeito, que eu não tive dúvida!

Levantei, tasquei todos os meus remédios na latrina e dei descarga!

Vade retro, que meu juízo tarda, mas não... não... tá, pode até faltar, às vezes, mas quando não falta, sai de baixo!

***

Sábado. Minha irmã gêmea tomou um susto tão grande, essa semana!

Logo cedo, informaram que uma sobrinha e uma sobrinha-neta dela tinham contraído o coronavírus.

Sandra ficou tão nervosa, tão desnorteada, que conversou horas com Piti, pensando que tava conversando comigo...

Minha vizinha de quarto tentou acalmá-la, explicando que apesar de não terem histórico de atletas, as duas eram jovens, saudáveis, e com certeza iriam superar a infecção.

Bem, parece que Piti conseguiu tranquilizá-la um pouco, porque quando tava amanhecendo, ela desligou o celular e disse que ia tentar dormir...

Eu já tava quase pegando no sono, quando me deu um estalo!

Se Sandra é minha irmã e eu não tenho filha... a sobrinha não é dela, é minha, né?

Vixe! Então quem tomou o susto fui eu!

***

Domingo. Piti irrompeu em meu quarto mais revoltada do que fiel de cemiterada...

Sabe o que é cemiterada, né?

Melhor explicar...

É que antigamente os mortos do sanatório nacional eram enterrados sob o chão das igrejas, pra ficarem mais perto da salvação eterna, sabe como é que é?

Mas os cientistas constataram que os cadáveres putrefatos transmitiam as doenças infectocontagiosas das quais tinham sido vítimas, como cólera, peste bubônica...

Aí, o imperador decidiu abolir a prática, e mandou construir o primeiro cemitério do pedaço, bem afastado do céu centro.

Mas os devotos ficaram tão furiosos, mas tão furiosos com a heresia, que invadiram e destruíram totalmente o tal campo santo, a machadadas.

Então... Piti chegou aqui tipo fiel de cemiterada, espumando de raiva e derrubando tudo que encontrava pela frente!

Esperei ela quebrar o último copo do quarto e perguntei o motivo da tempestade da vez.

— A porra desse vírus!

E danou a maldizer a vida, que já tinha perdido a paciência, que agora, fora a cocoquina, ia seguir tudo quanto era terapia alternativa — que viesse vermífugo, sabonete anticovid, vitamina D, vitamina C, zinco e o escambau...

— Tem mais jeito seguro de combater essa merda?

— Lava a boca!

Marrapais...

Minha sorte foi ela não ter trazido machado, porque me deu uma almofadada na cabeça e vazou do quarto mais arisca do que entrou!

Nem deixou eu explicar o tratamento...

É que um médico peruano tá recomendando higienizar a boca várias vezes ao dia, porque o vírus não vai direto pro pulmão, né? Tem porta de entrada...

Mas fui dormir preocupadíssima.

Quem será que tá pirando piorando? Eu ou ela? Fiquei na maior dúvida...

(porque hoje é domingo...)