Cassiano Antico

Uma conversa (sem palavras) com meu tio morto sobre o juízo final

Escrever é o mais próximo que chego no mundo


Imagem: pxhere/Creative Commons

 
Pratique o bem todos os dias e para todo mundo e você vai perceber que você já está no céu
-- Jack Kerouac

Procuro manter a lucidez em meio às loucuras e incertezas de proporções mundiais. E dou de cara com a inocência preservada, o amor preservado, a esperança preservada: nos olhos de minhas filhas, no sorriso de minha companheira.

Não tenho o direito de pisar nas flores do meu jardim. Flores que plantei com minhas próprias mãos e reguei com as lágrimas dos meus olhos; e muito menos jogar o lixo no terreno do vizinho.

Não é caso de ser bonzinho ou evoluído ou equilibrista de carma, mas porque minha consciência pesa sobre meus ombros mais que a opinião do mundo.

E Hendrix canta: "A névoa púrpura estava toda em meus olhos. Não sei se é dia ou noite. Você me confundiu, confundiu minha mente: se é amanhã ou somente o final dostempos".

E a gente mata no peito: a noite, o dia ou o fim dos tempos. E final de semana que passou viajamos para a chácara em Bragança Paulista, mas mantivemos estoicamente o isolamento social. Entramos no carro e descemos no mato. Colhemos frutas no pé, andamos descalços, testemunhamos o sol desaparecer no horizonte, nadamos na água gelada, corremos em fila indiana, cantamos livres como os índios da última tribo intocável do planeta, contamos os pássaros livres no céu, comemos brigadeiro ainda quente na panela com colher de pau.

Esqueci de mim; reconheci-me num todo, maior e melhor que eu. Um atalho, um respiro, uma pausa, neste momento claustrofóbico e assombrado em que estamos todos afundados até o pescoço.

Enquanto escrevo, as lembranças das risadas de minhas filhas brincando na água acariciam o meu coração triste. Dodó (3 anos) aprendeu a mergulhar e mergulhou incontáveis vezes para resgatar a zebra de pelúcia do fundo da piscina. Elas, as crianças, sabem instintivamente viver no agora, contagiam o ambiente de alegria e de ternura. Meu Deus, como são espontâneas! Sobretudo não mentem como a maioria dos adultos. Pois aquele que mente a si mesmo e escuta sua própria mentira chega ao ponto de não mais distinguir a verdade. Não pode amar. Deixa de viver. Deixa de ser.

Solidão não se cura com analgésicos. Tristeza não passa com um quilo de doces ou dois litros de cachaça. Há sempre uma hora do dia ou da noite em que o ser humano é mais covarde. É dessa hora que devemos ter medo.

Hoje é aniversário de um amigo. Não vai ter bolo e nem festa. Ele está entubado. Espero que metam em seus ouvidos dormentes Jimi Hendrix e "Blind" Willie Johnson - seus cantores prediletos e inseparáveis. Porque acabo de acordar de um sonho.

Sonhei com meu tio. Meu tio morreu há pouco tempo, mas estava tão vivo. Sinto o seu cheiro, a sua presença, o seu amor. Ele me mostra uma fila de pessoas poderosas, temíveis, dominadoras, invejáveis, santas: de Nero à Medéia; de Maomé ao Tsar Ivan, O Terrível; de Napoleão a  Shakespeare. Todos com suas vaidades, orgulho, seguidores, plágios, penduricalhos, patentes, pancas e pose que se desfazem em fraldões geriátricos de ouro e vergonha e insegurança e medo: diante de uma multidão selvagem e furiosa.

Tais "celebridades" me agradecem chorando como crianças desprotegidas quando as cubro com o manto branco que o tio me dá para tal finalidade. E como são pequenas e frágeis e ossudas e fedidas!

Depois, o tio me conduz até uma sala de chão de terra que tem duas poltronas. Uma das poltronas está toda furada, com buracos enormes. Sem me dizer nada, ele me pede com os olhos para preencher os buracos. Aquilo, estranhamente, me alivia. Enquanto preencho, ouço berros de dor, sofrimento, do lado de fora da oca, ou sala. Pergunto se posso ajudar - ele me fala que não, com um gesto -, e que é para ser assim.

Continuo fazendo o que estava fazendo. Sinto o seu amor, puro, como nunca vi em lugar nenhum no mundo, e confio. Pergunto se é o dia do juizo final. Ele me diz que não. Ainda sem falar nada, me revela que o juízo final é todo dia.

Acordo suando em bicas... Tento dormir de novo. Não consigo. Escrever é o mais próximo que chego no mundo. Nos mundos. Dos vivos e dos mortos.