Escritos

Coerência em tempos de vírus

Quando aparece um vírus lascador como esse Covid 19, é bom mesmo que a imprensa bote o terror

Foto: pxhere/Creative Commons

Certa vez, respondi a umas 50 questões de um teste que fazia um ranking das 20 melhores virtudes pessoais. O teste não indicava o valor de cada uma delas em termos percentuais, somente estabelecia a ordem de importância na vida da pessoa.  

Não consegui localizar agora o arquivo com o resultado final do meu teste, para ter essas informações de forma mais exata, mas lembro bem que, no topo da minha lista, estavam: coerência, justiça e honestidade.

Amor estava situado mais próximo das últimas posições do que das primeiras, e, se não me engano, humildade era a lanterninha.

Mesmo me considerando uma pessoa nada arrogante e com uma ampla capacidade de amar, achei o resultado bem condizente. 

Justamente por essas três virtudes que me são as mais caras, que, para mim, a chamada regra de ouro, “não faça com os outros o que não gostaria que os outros fizessem com você”, é regra da mais nobre esmeralda, do mais puro diamante. 

E se há uma coisa que me irrita ao ponto de virar revolta e indignação é o “faço o que eu digo, não faça o que eu faço”, principalmente, quando essa postura individual tem repercussão na vida de outras pessoas.

Eis que surge um vírus novo que se alastrou rapidamente e tomou proporções mundiais.  Como efeito colateral da pandemia, vem um pandemônio de informações na mídia e nas redes sociais.

E todo mundo começa a mandar mensagens sobre medidas preventivas assinadas por toda sorte de especialistas renomados da puta que pariu, formados no caralho a quatro (no dia a dia falo muito pouco palavrão, mas acho que, em algumas situações, eles têm uma força de expressão que a língua culta não é capaz de oferecer) recomendando entre outras coisas o que há anos a Organização Mundial de Saúde orienta em campanhas para a população em geral e em outras específicas para os próprios profissionais da área médica: “lavar as mãos com água e sabão previne boa parte das doenças”.

Quando minhas filhas eram recém-nascidas, eu era considerada a Mamãe Capeta pela política de restrição de visitas e a chata do pedaço que tinha de pedir o tempo todo para as pessoas lavarem as mãos antes de pegarem nas minhas bebês, pois eram muito poucos os que o faziam espontaneamente. 

Vale lembrar que, mesmo com todo esse meu papel de polícia, Bianca pegou um rotavírus com menos de dois meses de idade.

Até hoje, com minhas filhas já mais crescidinhas, embora não compre mais tanta briga, ainda envio olhares fuzilantes, nos casos mais extremos de falta explícita de noção. 

Um amigo de Hans, por exemplo, já duas vezes, em ocasiões diferentes, num evento cultural que ocorre na praça de Stella Maris, logo depois de usar o banheiro químico, ao retornar para a nossa companhia, segurou a mãozinha de Bianca para dar um beijo nela.

Como já sou escolada nesse tipo de situação (afinal, a gente costuma atrair o que evita), desenvolvi a técnica de imobilizar com uma de minhas mãos a mãozinha “contaminada” e com a outra pegar um lencinho umedecido e álcool gel na bolsa antes de que minha filha possa levá-la à boca.

Já ouvi da pediatra e da homeopata das meninas que é muito comum a criança ficar doente dias antes, no próprio dia ou nos dias subsequentes à festa de um ano. E aí eu pergunto: quantos pais você conhece que deixaram de fazer a comemoração do aniversário porque a criança estava doente e quantos você conhece que a fizeram mesmo nessa circunstância e, o que é pior, sem avisar os convidados e com a criança passando de colo em colo e compartilhando os mesmos brinquedos com as outras crianças da mesma idade? 

Já presenciei essa situação no caso de uma criança que, menos de 48 horas antes de uma festa para muito mais de cem pessoas, tinha passado a noite na emergência e saiu de lá com o diagnóstico de bronquiolite.

Não era uma febrezinha boba, era uma bronquiolite, uma doença causada por um vírus para o qual existe uma vacina chamada Palivizumabe que só tem eficácia pelo período de um mês e cuja dose custa cerca de cinco mil reais. 

Essa vacina é oferecida de forma gratuita pelo governo, mediante apresentação de laudo médico, para bebês que nasceram prematuros, com cardiopatia ou outras doenças congênitas que causam imunodeficiência, em cinco doses, com intervalo de 30 dias, durante os meses de março a agosto, que é o período de maior propagação da doença.

Como Bianca tinha cardiopatia e nasceu em abril, teve direito às cinco doses dessa vacina. Isso porque fez cirurgia cardíaca com 5 meses de idade. Se a cardiopatia persistisse, ela teria direito a mais outras cinco doses da vacina antes de completar dois anos.

Se o Estado gasta até 50 mil reais para proteger uma criança imunodeficiente desse vírus, não se trata, portanto, de uma doença sem maiores riscos.

Na ocasião em que Bianca pegou o vírus Coxsackie, popularmente conhecido como pé-mão-e-boca, e que nela teve um efeito devastador, Catarina apresentou um episódio de febre isolada. 

Como tínhamos um aniversário de criança para ir, do qual Catarina estava na expectativa há dias, a levei num sábado de tarde junto com Bianca para a casa da minha prima pediatra para que ela também fosse examinada.

Eu falei para minha filha que a única hipótese de ela ir para o aniversário seria se ela tivesse o aval da tia (prima de segundo grau, na verdade) médica.

Apesar de Catarina não estar apresentando nenhum sintoma, de estar com a garganta limpinha e o pulmão zerado, só pelo fato de ter apresentado uma febre no dia anterior e por estar com a irmã doente, a tia-prima médica, que, além de pediatra é infectologista, achou que seria mais prudente ela não ir para a festa, para não haver o risco de passar para as outras crianças.

Comuniquei para a mãe do aniversariante, a qual é uma das pessoas mais hipocondríacas que eu conheço, que a decisão de não levar Catarina para a festa se baseava nessa avaliação. E o seguinte diálogo ocorreu:

- Mas você não falou que Catarina está bem?, ela me disse.

- Mas eu também lhe falei que Bianca está doente e que foi a pediatra delas que recomendou que seria melhor Catarina não ir”, respondi. 

Ignorando todas as informações por mim apresentadas, a pessoa ainda insistiu, com o pior de todos argumentos: “Mas ninguém tem como saber que ela está doente”.

E eu me limitei a dizer para ela encerrando a conversa: “Mas a questão é que eu sei”. E pensei comigo: “e você também sabe”.

E assim, nas melhores famílias, entre as pessoas mais instruídas, ainda prevalece a lógica do “vacina pouca, o aniversário do meu filho, primeiro”.

Então, quando aparece um vírus lascador como esse Covid 19, é bom mesmo que a imprensa bote o terror e que as autoridades estatais intervenham, porque, se dependermos exclusivamente de autoconsciência, autocuidado e sentimento de coletividade, a existência de boa parte da população do planeta pode estar seriamente ameaçada.