Cassiano Antico

Um diálogo impossível (como o sonho em Dom Quixote)


Dom Quixote - Foto: pxhere/Creative Commons

Por que Aldonza não quer ser chamada de Dulcinéia por Dom Quixote? Por que Aldonza prefere o pior xingamento da Terra a ser tratada com dignidade, como uma nobre dama? Por que tanta gente se identifica com Dom Quixote sem ter, ao menos, lido uma página do mostruoso livro de Cervantes?

Porque ele representa o sonho. O sonho impossível! A estrela inacessível! O que gostaríamos de ser. Não é da escuridão que temos medo, mas da nossa luz. Temos medo de ser bons. E dou de cara com o passado. Um passado recente, traumático, fraturado, doente. O passado tem um rosto, a superstição, e uma máscara, a hipocrisia. A obstinação de instituições caducas, famintas para se perpetuarem a todo custo, custando a manutenção das liberdades individuais.

Semelhante à obstinação do perfume estragado que quer continuar a besuntar-nos o corpo; como a arrogância de um peixe podre que ainda deseja ser saboreado num almoço de amigos; o corpo morto que nega o caixão; Parasitas!

Como dialogar com alguém que nega a existência do seu interlocutor? Que vive de monólogos e palavras de ordem, marchando altivo, como o vira-lata que acaba de roubar o lixo do vizinho, e só faz lambança? Um chefe de Estado não pode pilotar uma motoca, com a carteira vencida, usando o capacete como bem entende, ofendendo, ameaçando meio mundo. Multa de trânsito só vale pro coitado do motoboy, que luta para sobreviver?

Um ministro que chama a esposa do presidente da França de dragão, que chama o presidente da França de boióla: não é digno do cargo que ocupa. Aliás, todo ser humano merece respeito.

Nem chegamos, ainda, no patamar da gentileza, mas podemos começar pelo respeito. O óbvio nos socando a cara como um jab de Tyson (em seus tempos gloriosos) e ficamos inertes feito múmias, esperando a queda. Se nossos representantes não respeitam coisa nenhuma, quem o fará? Leonardo Dicaprio, o ator que taca fogo na Amazônia todo santo dia? A "pirralha" da Greta Tumberg, que deveria estar em Serra Pelada atrás de ouro? As crianças? Quem?

Ah, a culpa é da doméstica - balbuciam com aquela típica boquinha de chupar ovo. Ah, a culpa é do partido a, b, c, d. Somos os perfeitos, os honestos - proclamam! Fazem um piquenique em nossas costas e sabe o que fazemos com isso? Nós pedimos desculpa por estarmos de costas. É isso o que fazemos.

Um príncipe não é nada ao lado de um princípio. Nada. Zero. Princípios são fundamentos até na selva do senhor leão. Me desvio da perversidade: um raio de sol, um feixe extremamente brilhante, ilumina a boca de minha filha caçula, que dorme no sofá. Parece um anjo bebendo luz. A mais velha, 6 anos, me pergunta o que é terraplanismo. E eu abro o jogo com ela. "Terraplanismo, filha, é igual a bicho-papão, a elefante pescando no rio Tietê no verão: não existe".

E mostro o globo terrestre; e a gente deixa a bola rolar no chão da sala. Ela abre um sorriso que para, instantaneamente, a chuva torrencial da ignorância e da estupidez. E prestamos atenção na Ursa Maior - do Almagesto de Cláudio Ptolemeu. Minha filha é Dom Quixote, é Dulcinéia, é Ladybug, é Moana, é contadora de estórias, é contadora de estrelas...

É milagre! Ela não sonha o sonho impossível. Ela vive o sonho sonho impossível na mais perfeita melodia de um Jacques Brel.