Cassiano Antico

Uma festa do pijama (onde se pode sentir Deus) e uma igreja (sem Ele)

Muitas vezes precisamos viajar para bem longe só para perceber onde vivemos


Imagem: pxhere/Creative Commons

Valentina (6 anos) e Isadora (3 anos) foram dormir na casa do amiguinho. Festa do pijama. Festa de aniversário!

Um casal, amigos da gente, montou uma estrutura de 12 barracas na sala da casa e contrataram até monitor para receber 20 crianças. Mas eles também ficaram na lida, cuidando. 20 adoráveis pestinhas entre 3 e 6 anos de idade. Dá para imaginar? Haja paciência e coragem. E amor incondicional!

As duas pequenas saíram de casa de pijamas, mochilas nas costas e pantufas para uma noite recheada de brincadeiras, aventuras, doces e macarrão e que estou ouvindo relatos detalhados até agora enquanto tento escrever.

E sobre pantufas, aproveito para fazer um pequeno parêntese aqui. Tenho um amigo - Pinduca, tatuagem de coiote no braço, poeta, cantor, rockeiro, já com seus 50 e tantos no lombo -, que ama pantufas.

Pinduca mandou personalizar as suas. Em vez de um ursinho ou um leãozinho ou uma oncinha pintada elas têm o rosto de Jimi Hendrix, Ozzy Osbourne, Lemmy Kilmister, Leonard Cohen, Sid Vicious, Paulo Leminski, Cartola.Todas bordadas com perfeição. E perfeição na imagem também - você acha que é o carão do velho Ozzy no pé do poeta.

E numa sexta-feira à noite, sendo dia 13 ou dia 5 , quando está de bode, Pinduca joga 2 ou 3 pedras de gelo no copo cheio de whisky, mete um par de suas pantufas para rever um Hitchcock - e tem sempre um livro de Rimbaud ou de Piva por perto. Às vezes põe num pé o Cartola e no outro o Hendrix... Dias de humor samba-rock. Pinduca foi imortalizado numa canção da banda Saco de Ratos. Mesmo já tendo alcançado a eternidade através de sua grande arte. Sou fã confesso.

E depois deste pequeno parêntese, das pantufas personalizadas, cá estamos. Como é perto de casa, fomos (Ju e eu) buscá-las na caminhada. Reparando nos prédios antigos do centro da cidade. A mistura de estilos, os prédios envelhecidos, os batentes de madeira das janelas resistindo ao tempo. As paredes corroidas, a tinta sobre tinta. Como nós - resistindo ao mundo. 

E, muitas vezes, precisamos viajar para bem longe só para perceber onde vivemos, onde gastamos a maior parte do nosso tempo, onde respiramos. E nem reparamos no céu. Minhas filhas que me mostram. "Olha uma girafa lá, papai". "Tem um elefante ali".

"Não é elefante, Zazá. É uma tartaruga. O elefante já foi embola com o unicórnio'".

"Vou comer todo o céu de 'bligadeilo, papai".

Eu não preciso mais que a tempestade caia sobre minha cabeça para lembrar que tem alguma coisa lá em cima. E em cima de em cima Ad infinitum. E dos lados e embaixo - depende do ponto de referência. E que muda a todo instante. E que é bonito. Até quando é cinza.

E fomos de mãos dadas, vendo detalhes que estavam em todo canto, há anos, mas que nunca "vimos". Porque se "o olho não se enxerga", o que dizer sobre a realidade ou sobre a verdade?

Cioran escreveu que nós só aguentamos um ínfimo pedaço da verdade. Nossa estrutura, nossa compleição, não suporta mais do que o tamanho e peso de uma minúscula formiga - o chão se abriria sobre nossos pés e cairíamos num abismo sem fim.

Então, como formigas limitadas, seres finitos, em decomposição, incapazes de suportar a verdade, mas vivos como nunca, fomos andando tranquilamente, passando por ruas e calçadas até nos depararmos com uma cena bastante inusitada. De um lado: uma casa noturna. Do outro, bem de frente: uma igreja evangélica.

Passava das dez da manhã. E os jovens, do lado da casa noturna, alguns não tinham mais que 18 anos: caindo de bêbados. Havia velhos também, alguns com estilo; outros os joelhos tremiam, inseguros, tinham os ombros curvados pela decrepitude e pelo cansaço da vida, da noite, da bebida, da tristeza. E do outro lado do ringue, como disse: a tal igreja evangélica, com jovens também nessa faixa etária, expondo grandes cartazes coloridos com os dizeres "jesus vai te salvar", "jesus te ama", "o amor te libertará".

E não parava por aí. Não satisfeitos: gritavam os dizeres dos cartazes. Uma enxurrada de perdigotos! Parecia um confronto mesmo. Bem versus mal. Como aquela música da Xuxa. Alguns garotos entorpecidos riam, outros não se importavam. E outros dormiam no chão. Um gritou de volta: "Salvem a si mesmos se forem capazes e não encham o saco". E o coral "do bem" aumentava o volume em represália.

Se o objetivo dessa turma "do bem" é transmitir mensagem de amor, por que não enviam por WhatsApp? E o que me chamou a atenção foi a cara marrenta, a boca espumando ódio de muitos evangélicos - aquela baba de fúria secando no canto do beiço. Não senti a presença de Deus.

Mais adiante, estranhamente, senti a presença Dele num pequeno pássaro que pousou no topete de um poste quebrado, e, em seguida, voou alto até sumir no céu... E também nas crianças que corriam e sorriam sem motivo pela casa, pelas barracas que tinham o formato de cabana.