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A vida ganha mais alegria quando a gente desvenda o segredo do mapa do tesouro. E no fim das contas não é nada do que a gente imaginou. Quanto tempo o ser humano gasta, como um cão, correndo atrás do próprio rabo?
(Do filme Easy Rider)
O tesouro não está no fundo do mar. E nem num velho baú. Não existe o caricato Capitão Gancho com sua perna de pau, na companhia do papagaio conferencista pendurado em seu ombro, e aquela luneta apontando para a direção exata. Porque tesouro não é apenas ouro ou prata, amigo.
Outro dia amanheceu sem aurora, apesar do sol torrando o asfalto - dava até para fritar bifes ou ovos ou até mesmo grelhar uns peitos de frango. Tipo de dia capaz de fazer o mais esperançoso dos homens, ou Poliana, perder-se por completo no labirinto do fauno, e duvidar, duvidar de tudo, até dos próprios pés sobre o chão.
Um dia assim, triste assim, em que a gente tem que rasgar-se por dentro para remendar-se por fora: apenas para se arrastar por mais alguns metros. Como a mãe cadeirante que acaba de receber a notícia de que seu filho morreu atropelado.
Dá para imaginar tamanha dor? Medir com fita métrica? Comparar com alguma outra tragédia? Dizer que esta ou aquela é inferior ou superior ou igual? Tem algum analgésico capaz de aliviar o tormento de tal alma humana? Já inventaram cirurgia plástica para a alma? Ou para as coisas da alma? Um botox para dar uma endurecida no espírito? Existe lugar para comprar uns quilos de alegria? Quantos likes essa mãe precisa para ficar feliz? Quantos ela "merece"?
Mas apesar do coração atingido por uma bala de espingarda calibre doze, essa mãe mutilada tem mais três filhos, e sabe que eles precisam dela. Então, completamente desarmada, ela monta em suas próprias pernas - cortadas de seu corpo por conta da diabetes -, e vai encarar o mundo, parte para cima do cachalote (a gigante Baleia do Romance Moby Dick). Porque o monstro do mar só está dando um tempo.
A vida, no fim das contas, resume-se a isso. Tempo. E o que fazemos com ele. Sabemos como termina. "Daqui ninguém sai vivo". O coveiro terá a última palavra.
Por isso me comovi profundamente com o depoimento de uma conhecida, doente terminal: "Gostaria que as pessoas pudessem estar dentro de mim por cinco minutos. Só cinco minutos. Tenho trinta e cinco anos. Estou aprendendo a tocar violão. Sempre quis aprender. Tomei coragem só agora. Que coisa mais linda que é a música. Que é a vida. Mas o câncer se espalhou pelo meu corpo inteiro. Agradeço não apenas um dia de vida. Isso já é muito, né? Agradeço poder tomar um banho. Sentir a água escorrendo pelo meu corpo todo, sentir o cheiro do sabonete. Vou morrer antes de completar trinta e seis anos."
Então, depois de um dia sem aurora, correndo atrás do meu próprio rabo, fecho suavente meu olhos - estou na porta de casa -, e rezo, ou melhor, agradeço com toda a força do meu ser a coragem daquela mãe de pernas amputadas, mas que nada a impede de seguir em frente.
A baleia assassina está bem ali, e ela segue no seu barquinho em meio a um mar revolto com a certeza de que poderá até ser destruída, mas jamais derrotada. E, antes de abrir a porta, penso na moça morrendo e aprendendo a tocar violão. Ela não conta os minutos de vida. Ela os vive.
Ouço as mais lindas melodias ultrapassando as nuvens para além da atmosfera - sem gravidade. E já, dentro de casa, minhas filhas me recebem com pulos de alegria e me pedem para ler histórias. Leio o conto da vaca que botou um ovo. Elas riem enquanto a vaca fica chocando o ovo ou passeando com ele pela fazenda ou conversando com as galinhas. Reparam em tudo. Nas árvores, nos bichos, nas fisionomias, nos rios, no céu.
Toda minha ansiedade mundana desaparece; essa angústia de estar num mundo em que falamos sim quando queremos dizer não; em que rimos quando nossos olhos choram de dor; um mundo em que criamos uma bomba tão potente que é capaz de destruí-lo cinco vezes; mas também um mundo de gente como aquelas duas mulheres, vivendo no anonimato como muitos! Pessoas que não vão aparecer nas capas de revistas e nem ganhar medalhas de honra ao mérito, e muito menos uma viagem para Miami. Mas se eu não escrever sobre elas: quem vai? Shakespeare? Machadão? Marquês de Sade?
Esqueço tudo. Minhas filhas dormem segurando as minhas mãos. Gostaria de poder congelar o momento. Durmo como se fosse a primeira vez. Quando acordo, está escuro. Sinto uma luz suave iluminando o ambiente. Não é uma luz que vem de fora, ou de uma divindade que precisa ser continuamente temida ou adorada. É a mesma luz que vi na mulher morrendo de câncer e abençoando cada segundo de vida; é a luz que emana da mãe sem pernas caminhando sobre um mar revoltoso.