Casa de ferreiro...
Advogada reconhecida pelo seu trabalho em prol dos direitos humanos e no combate à violência contra a mulher e homofobia, Denise foi convidada pela prima para passar seu primeiro carnaval em Salvador.
Esbaldou-se acompanhando a banda La Furia.
Milhares de fotos e selfies marcaram a viagem da causídica.
Na volta a São Paulo, foi sumariamente demitida e viu seus colegas militantes das causas sociais lhe virarem a cara.
-- Juro que não sabia o que estavam cantando... aqueles graves ensurdecedores não deixaram entender as letras - desculpou-se a nova desempregada, sem conseguir apoio da OAB.
A ativista dos direitos das mulheres era agora vista como machista, homofóbica e difusora da cultura do estupro.
Sentiu La Fúria subir à cabeça e nunca mais quis ouvir um pagofunk.
***
...Espeto de pau
Ela encheu o corpo de adesivos "Respeite as mina" e do tipo "Sou mulher, exigo respeito!".
Dobrou a esquina e deu de cara com uma banda que arrastava uma multidão - de mulheres, inclusive -, cantando músicas com títulos como: "Cadê a pepeka?", "Rabetão no paredão", "Pau nas putiane", "Tá no ponto de dar", "A tcheca desce e a perna abre", "Senta no meu piruzinho"...
Desceu até o chão, pulou, despenteou-se, gritou "Me representa"...
E o suor desbotando os adesivos.
***
Almas gêmeas
Incrível como duas pessoas podem ter a mesma química, ser bandas da mesma laranja, uma a tampa da panela da outra.
Assim eram Carlinhos e Suzi - que tinha esse nome devido ao carinho que a mãe teve com as bonecas da infância.
Tinham sido moldados uma para o outro e o outro para uma.
Ele morava em Cajazeiras; ela no Nordeste de Amaralina.
Dificilmente se encontrariam na vida. O Carnaval era a grande oportunidade.
Roqueiro, ele frequentava o Palco do Rock, nos coqueirais de Piatã. Axezeira, ela era pipoca certa entre a Barra e a Ondina.
O destino tentou ajudar, mas nunca se encontraram.
E não foram felizes para sempre.
***
Amor de carnaval
Do alto do trio, a Banda Beijo, ainda com sua formação inicial, com Netinho no vocal, entoava "Mila, mil e uma noites de amor com você".
No asfalto quente, Netinho e Mila trocaram olhares e deram muitas risadas com a coincidência.
Amor à primeira vista, ao primeiro beijo.
Sabiam ser uma relação difícil...
Ele de Brasília, ela de Vitória do Espírito Santo, mas a química, o amor pelo Carnaval de Salvador e o desejo de estar juntos novamente fez com que marcassem se encontrar em todos os carnavais a partir dali.
Foi o que aconteceu: uma, duas, três, várias vezes.
Netinho deixou a banda para carreira solo, Gilmelândia assumiu o bloco, vieram outras formações.
Eles sempre estavam lá, se encontravam no primeiro dia de bloco e passavam o restante da festa juntos.
Não se faziam perguntas, cobranças.
Era apenas o amor carnavalesco, real.
Não trocaram telefones, endereço ou e-mail.
Bastava ser Carnaval, o encontro estava marcado e o amor fluía de forma tão abundante que transbordava.
Eram felizes, assim.
Até que um dia o bloco deixou de desfilar.
E foram infelizes para sempre.
***
A coragem de Vini
Os amigos ficaram atônitos quando Vini declarou convictamente:
-- Não gosto de Ivete!
-- Como assim, tá brincando? Sacanagem, né!? - retrucou Didi
-- Não gosto e pronto!
-- Como alguém pode não gostar de Ivete? – espantou-se Ninha
-- Não gosto, nem sou obrigado a gostar!
-- Ah! Você é do fã clube de Cláudia... Já entendi! The Voice kids, né?
-- Não gosto de Cláudia!
-- Então é adorador de Daniela...! Seu Banzeiro...!
-- Não gosto de Daniela!
-- Margareth...? Márcia...? Katê...? Carla...? Vina...?
-- Não, nenhuma delas!
-- Você está louco, Vini? Esqueceu de tomar o remedinho hoje, foi? – debochou Moni
-- Nada disso, não gosto de ouvir. Não suporto ver. Simples assim! Me libertei! Não gosto e pronto!
- De quem você gosta, então? – perguntou Rafinha, em tom de desaforo.
-- Da Baby. Da Baby Consuelo. Anos 70 para 80, antes de virar a cabeça e mudar para Baby do Brasil... com aquele suvaco cabeludo, aquela voz sensual, gingado, aquela energia telúrica. Aquela carinha de quem fez seis filhos e que faria muitos mais cantando Brasileirinho...
-- Manda internar – gritaram em coro todos os amigos e amigas e foram desfazendo o grupo sorrateiramente, cantarolando "No Groove"...
***
Samba do contínuo doido
O ministro da Justiça era Paulo Brossard, gaúcho dos pampas, de terno de linho e chapéu Panamá.
O diretor de Redação do jornal A Tarde, em Salvador, era uma lenda do jornalismo baiano: Jorge Calmon Moniz du Pin e Bittencourt.
O auxiliar de serviços gerais, em A Tarde, era mais do que destrambelhado.
E, em Porto Seguro, os índios Pataxó encontravam-se em pé de guerra.
Estava montado o cenário para uma das histórias mais surrealistas do jornal baiano.
Paulo Brossard liga para Dr. Jorge - como todos o chamavam. Quem atende? O contínuo desavisado.
Segue-se o diálogo:
-- Aqui é o ministro Brossard. Dr. Jorge encontra-se?
-- Ainda não chegou, ligue mais tarde.
-- Não é preciso, apenas informe, fazendo-me um favor, que liguei para dizer que estou muito preocupado com a situação dos índios Pataxó.
Chega Dr. Jorge Calmon, e dá-se o surrealismo.
-- Dr. Jorge, um ministro aí ligou para o senhor.
-- Ah, sim? E o que ele queria?
-- Ele disse que este ano sai nos Apaxes do Tororó (para quem não é de Salvador, um bloco de índios que desfilava no carnaval).
Na cabeça do contínuo, era tudo índio.
Naquele ano, os Apaxes (com xis, mesmo) saíram sem Brossard.
***
Quando o tênis confessa
Era o carnaval de 2005, época de mamãe sacode e serpentina.
O folião tinha 46 anos e há muitos deixara de curtir o carnaval, mas estava de namorada nova e quis fazer uma graça.
Resolveu ir com ela ao Farol da Barra.
E foi bem ali, com o suor escorrendo pelos baixios, que a feijoada avisou: iria sair por bem ou por mal e bem antes da saída do trio.
Largou a mão da namorada e correu pro mar.
Voltou com uma desculpa na ponta da língua.
Que não teve tempo de dar, porque a namorada fez a pergunta inesperada:
- O que é isso no seu tênis?
***
A ponta do tacape
Zeca costumava vestir-se de pierrô para ir à Praça Castro Alves e aos bailes de clubes.
Veio a moda das mortalhas com os blocos de trio.
Ele encarou.
Depois os terríveis macacões - invenção dos infernos no calor da soterópolis.
Os abadás eram mais agradáveis e Zeca se sentiu aliviado.
Gostava também de sair com a fantasia do Ghandy.
Algumas vezes, de farra, saiu de Muquiranas... mas o que Zeca gostava mesmo era a fantasia dos blocos de índio: arco, flexa e por debaixo das penas... nada.
Foi preso duas vezes por atentado ao pudor.
***
Virou princesa
Os amigos fizeram uma aposta: quem beijasse a mulher mais feia ganharia um abadá para o bloco do dia seguinte.
Dudu beijou Katyelle, ganhou a aposta e o abadá.
Mas ele havia gostado do beijo e comprou um para que ela fosse junto.
Fevereiro acabou, noivaram em março e no São João se enroscaram de vez, em casamento na roça do pai de Katyelle.
Os amigos - que perderam a aposta do beijo - foram os padrinhos.
Foto: Pixabay/Creative Commons
***
Em vez de valsa veio um baião
Tigrão era um namorador, mas sem namoradas, e colocava a culpa no fato de ser pedestre.
"Sem carro é impossível namorar, quanto mais ir além disso", queixava-se.
Uma semana antes do carnaval comprou um fusca amarelo gema de ovo.
3 dias depois foi ao banco e convidou a menina do caixa para sair com ele na pipoca.
E - como se por milagre - ela aceitou.
"Milagre nada, é o carro!", jurava Tigrão.
No primeiro dia de carnaval lá se foi Tigrão buscar a namorada - chamemos assim - pertinho da Igreja do Bonfim.
Estacionou o possante gema de ovo à frente da casa da menina, abriu a porta para que ela - uma colombina inocente e pura - entrasse, fez a volta, pegou na maçaneta do outro lado e cagou-se todo.
O vexame escorreu pelas pernas, encheu as botas "Jerry Adriani" - de couro e salto.
Desesperado, com a colombina sentada, disparou ladeira do Bonfim abaixo.
Correu até em casa, na Praça da Piedade.
Fez o certo.
O que uma pessoa numa situação dessas, pode dizer?
- Desculpe, pensei que era uma valsa, veio um baião?
***
O cajado da paz
Joca não tinha completado 18 anos, mas realizaria o sonho de sair no Ghandi.
Fantasia, toalhas, colares, seiva de alfazema, chinelos de couro confortáveis.
Estava pronto.
Na avenida, em meio àquela onda formada pelo tapete branco, ele viu o próprio Ghandi à sua frente.
Perplexo, não tirou os olhos daquele que era um dos maiores ícones da paz.
De repente, Ghandi percebe a insistência do olhar curioso do menino, vira-se em sua direção e levanta o saiote...
Foi o último ano de Joca no afoxé.
***
O almoço de Otacílio
Otacílio dividia o ano em 3 partes: "antes do carnaval, o carnaval em pessoa, e depois do carnaval".
Nada, nem a Santa Madre Igreja, conseguia afastá-lo de seguir o Bloco do Jacu e quem mais estivesse passando pela Avenida Sete.
Mas um dia se casou.
Para seu desespero, a mulher ("a patroa", como a ela se referia) era católica dos quatro costados, não arredava pé da sacristia nem admitiria jamais que Otacílio se entregasse à esbórnia.
No primeiro dia de carnaval Otacílio avisou à patroa: "vou comprar peixe pro almoço".
Voltou nas Cinzas, quando a família já estava de luto, chorando seu desaparecimento.
Tinha nas mãos duas latas de sardinha.
***
Ficou difícil
Na falta de fantasia, ela vestiu um biquíni branco, amarrou na cintura um tecido azul brilhante e se maquiou como sereia.
Nos pés, sandálias havaianas - somente até metade do percurso porque a cerveja era liberada e no meio da fanfarra uma delas escorregou e se perdeu.
E lá se foi a sereia, de biquíni branco, um pé calçado e o outro não.
Preocupada com os cacos de vidro no chão, desprotegeu-se a bombordo e se deixou beijar por um "pirata".
Encerrado o beijo, deram-se as mãos e seguiram a fanfarra.
Mais à frente, numa tentativa de diálogo, o "pirata" empacou na primeira sílaba e dela não saiu, navio de âncoras arriadas.
Era gago, o pirata, gaguíssimo.
Para a sereia restaram um biquíni branco e um pé de chinelo.
***
Era ele
Todo Carnaval a funcionária pública Cris era deslocada para trabalhar em um dos postos da Prefeitura em apoio à folia.
Final de expediente do domingo e ela ainda esperava o marido...
Perguntava toda hora ao segurança se ele tinha chegado.
Cansada, decidiu sair.
Escornado nos degraus estava lá seu esposo.
Ainda vestia restos de uma fantasia de bloco travestido.
O cabelo, desgrenhado, tinha alguns prendedores.
Batom borrado por todo o rosto.
Nas mãos, uma pistola de água, já vazia.
- Olha ele aqui, por que não me avisou? - perguntou ao segurança!
- Isso aí é seu marido?
***
Sem aperto de mãos
Luizão e Tito foram colegas, parceiros, amigos, irmãos durante o fundamental e ensino médio.
Há muito não se viam.
Segunda-feira de Carnaval, quase meia-noite, coincidentemente recorreram ao Beco do Mijo durante a passagem de um bloco afro.
Trocaram um "oi" entusiasmado, mas sem aperto de mão ou abraço.
Balançaram, guardaram de volta e retornaram sem graça para a Praça do Poeta.
Tomaram diferentes rumos.
Ah, a poesia!
Há poesia!
***
Traído pelo coração
O Bloco: Filhos de Ghandi.
Objetivo: beijar muito.
Estratégia: dezenas de colares.
... Mas, no segundo dia de desfile se apaixonou por uma Muquirana.
Felizes para sempre?
***
Receba!
Lembram quando no carnaval de Salvador todo mundo usava uma fantasia chamada mortalha (uma espécie de camisolão de fantasma, só que colorido)?
Pois lá ia um bloco descendo a ladeira de São Bento, quase na Praça Castro Alves, quando uma foliã levanta a mortalha, arranca o absorvente e joga para trás (sem nem olhar).
O folião que viu a cena, fechou os olhos.
Ainda hoje imagina a surpresa de quem vinha atrás e recebeu o pacote pelo meio da cara.