Carnaval

Histórias (reais ou não) que só acontecem porque é carnaval

E quem quiser que nos conte outras (envie sua história para leiamais.ba@gmail.com)

Foto: pxhere/Creative Commons

Casa de ferreiro...
Advogada reconhecida pelo seu trabalho em prol dos direitos humanos e no combate à violência contra a mulher e homofobia, Denise foi convidada pela prima para passar seu primeiro carnaval em Salvador.

Esbaldou-se acompanhando a banda La Furia.

Milhares de fotos e selfies marcaram a viagem da causídica.

Na volta a São Paulo, foi sumariamente demitida e viu seus colegas militantes das causas sociais lhe virarem a cara.

-- Juro que não sabia o que estavam cantando... aqueles graves ensurdecedores não deixaram entender as letras - desculpou-se a nova desempregada, sem conseguir apoio da OAB.

A ativista dos direitos das mulheres era agora vista como machista, homofóbica e difusora da cultura do estupro.

Sentiu La Fúria subir à cabeça e nunca mais quis ouvir um pagofunk.

***

...Espeto de pau
Ela encheu o corpo de adesivos "Respeite as mina" e do tipo "Sou mulher, exigo respeito!".

Dobrou a esquina e deu de cara com uma banda que arrastava uma multidão - de mulheres, inclusive -, cantando músicas com títulos como: "Cadê a pepeka?", "Rabetão no paredão", "Pau nas putiane", "Tá no ponto de dar", "A tcheca desce e a perna abre", "Senta no meu piruzinho"...

Desceu até o chão, pulou, despenteou-se, gritou "Me representa"...

E o suor desbotando os adesivos. 

***

Almas gêmeas
Incrível como duas pessoas podem ter a mesma química, ser bandas da mesma laranja, uma a tampa da panela da outra.

Assim eram Carlinhos e Suzi - que tinha esse nome devido ao carinho que a mãe teve com as bonecas da infância.

Tinham sido moldados uma para o outro e o outro para uma.

Ele morava em Cajazeiras; ela no Nordeste de Amaralina.

Dificilmente se encontrariam na vida. O Carnaval era a grande oportunidade.

Roqueiro, ele frequentava o Palco do Rock, nos coqueirais de Piatã. Axezeira, ela era pipoca certa entre a Barra e a Ondina.

O destino tentou ajudar, mas nunca se encontraram.

E não foram felizes para sempre.

***

Amor de carnaval 
Do alto do trio, a Banda Beijo, ainda com sua formação inicial, com Netinho no vocal, entoava "Mila, mil e uma noites de amor com você".

No asfalto quente, Netinho e Mila trocaram olhares e deram muitas risadas com a coincidência. 

Amor à primeira vista, ao primeiro beijo. 

Sabiam ser uma relação difícil...

Ele de Brasília, ela de Vitória do Espírito Santo, mas a química, o amor pelo Carnaval de Salvador e o desejo de estar juntos novamente fez com que marcassem se encontrar em todos os carnavais a partir dali. 

Foi o que aconteceu: uma, duas, três, várias vezes.

Netinho deixou a banda para carreira solo, Gilmelândia assumiu o bloco, vieram outras formações.

Eles sempre estavam lá, se encontravam no primeiro dia de bloco e passavam o restante da festa juntos.

Não se faziam perguntas, cobranças.

Era apenas o amor carnavalesco, real.

Não trocaram telefones, endereço ou e-mail.

Bastava ser Carnaval, o encontro estava marcado e o amor fluía de forma tão abundante que transbordava.

Eram felizes, assim.

Até que um dia o bloco deixou de desfilar.

E foram infelizes para sempre.

***

A coragem de Vini
Os amigos ficaram atônitos quando Vini declarou convictamente:
-- Não gosto de Ivete!
-- Como assim, tá brincando? Sacanagem, né!? - retrucou Didi
-- Não gosto e pronto!
-- Como alguém pode não gostar de Ivete? – espantou-se Ninha
-- Não gosto, nem sou obrigado a gostar!
-- Ah! Você é do fã clube de Cláudia... Já entendi! The Voice kids, né?
-- Não gosto de Cláudia!
-- Então é adorador de Daniela...! Seu Banzeiro...!
-- Não gosto de Daniela!
-- Margareth...? Márcia...? Katê...? Carla...? Vina...?
-- Não, nenhuma delas!
-- Você está louco, Vini? Esqueceu de tomar o remedinho hoje, foi? – debochou Moni
-- Nada disso, não gosto de ouvir. Não suporto ver. Simples assim! Me libertei! Não gosto e pronto!
- De quem você gosta, então? – perguntou Rafinha, em tom de desaforo.
-- Da Baby. Da Baby Consuelo. Anos 70 para 80, antes de virar a cabeça e mudar para Baby do Brasil... com aquele suvaco cabeludo, aquela voz sensual, gingado, aquela energia telúrica. Aquela carinha de quem fez seis filhos e que faria muitos mais cantando Brasileirinho...
-- Manda internar – gritaram em coro todos os amigos e amigas e foram desfazendo o grupo sorrateiramente, cantarolando "No Groove"...

***

Samba do contínuo doido
O ministro da Justiça era Paulo Brossard, gaúcho dos pampas, de terno de linho e chapéu Panamá.

O diretor de Redação do jornal A Tarde, em Salvador, era uma lenda do jornalismo baiano: Jorge Calmon Moniz du Pin e Bittencourt.

O auxiliar de serviços gerais, em A Tarde, era mais do que destrambelhado.

E, em Porto Seguro, os índios Pataxó encontravam-se em pé de guerra.

Estava montado o cenário para uma das histórias mais surrealistas do jornal baiano.

Paulo Brossard liga para Dr. Jorge - como todos o chamavam. Quem atende? O contínuo desavisado.

Segue-se o diálogo:

-- Aqui é o ministro Brossard. Dr. Jorge encontra-se?

-- Ainda não chegou, ligue mais tarde.

-- Não é preciso, apenas informe, fazendo-me um favor, que liguei para dizer que estou muito preocupado com a situação dos índios Pataxó.

Chega Dr. Jorge Calmon, e dá-se o surrealismo.

-- Dr. Jorge, um ministro aí ligou para o senhor.

-- Ah, sim? E o que ele queria?

-- Ele disse que este ano sai nos Apaxes do Tororó (para quem não é de Salvador, um bloco de índios que desfilava no carnaval).

Na cabeça do contínuo, era tudo índio.

Naquele ano, os Apaxes (com xis, mesmo) saíram sem Brossard.

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Quando o tênis confessa
Era o carnaval de 2005, época de mamãe sacode e serpentina.

O folião tinha 46 anos e há muitos deixara de curtir o carnaval, mas estava de namorada nova e quis fazer uma graça.

Resolveu ir com ela ao Farol da Barra.

E foi bem ali, com o suor escorrendo pelos baixios, que a feijoada avisou: iria sair por bem ou por mal e bem antes da saída do trio.

Largou a mão da namorada e correu pro mar.

Voltou com uma desculpa na ponta da língua.

Que não teve tempo de dar, porque a namorada fez a pergunta inesperada:

- O que é isso no seu tênis?

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A ponta do tacape
Zeca costumava vestir-se de pierrô para ir à Praça Castro Alves e aos bailes de clubes.

Veio a moda das mortalhas com os blocos de trio.

Ele encarou.

Depois os terríveis macacões - invenção dos infernos no calor da soterópolis.

Os abadás eram mais agradáveis e Zeca se sentiu aliviado.

Gostava também de sair com a fantasia do Ghandy.

Algumas vezes, de farra, saiu de Muquiranas... mas o que Zeca gostava mesmo era a fantasia dos blocos de índio: arco, flexa e por debaixo das penas... nada.

Foi preso duas vezes por atentado ao pudor.

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Virou princesa
Os amigos fizeram uma aposta: quem beijasse a mulher mais feia ganharia um abadá para o bloco do dia seguinte.

Dudu beijou Katyelle, ganhou a aposta e o abadá.

Mas ele havia gostado do beijo e comprou um para que ela fosse junto.

Fevereiro acabou, noivaram em março e no São João se enroscaram de vez, em casamento na roça do pai de Katyelle.

Os amigos - que perderam a aposta  do beijo - foram os padrinhos.


Foto: Pixabay/Creative Commons

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Em vez de valsa veio um baião
Tigrão era um namorador, mas sem namoradas, e colocava a culpa no fato de ser pedestre.

"Sem carro é impossível namorar, quanto mais ir além disso", queixava-se.

Uma semana antes do carnaval comprou um fusca amarelo gema de ovo.

3 dias depois foi ao banco e convidou a menina do caixa para sair com ele na pipoca.

E - como se por milagre - ela aceitou.

"Milagre nada, é o carro!", jurava Tigrão.

No primeiro dia de carnaval lá se foi Tigrão buscar a namorada - chamemos assim - pertinho da Igreja do Bonfim.

Estacionou o possante gema de ovo à frente da casa da menina, abriu a porta para que ela - uma colombina inocente e pura - entrasse, fez a volta, pegou na maçaneta do outro lado e cagou-se todo.

O vexame escorreu pelas pernas, encheu as botas "Jerry Adriani" - de couro e salto.

Desesperado, com a colombina sentada, disparou ladeira do Bonfim abaixo.

Correu até em casa, na Praça da Piedade.

Fez o certo.

O que uma pessoa numa situação dessas, pode dizer?

- Desculpe, pensei que era uma valsa, veio um baião?

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O cajado da paz
Joca não tinha completado 18 anos, mas realizaria o sonho de sair no Ghandi.

Fantasia, toalhas, colares, seiva de alfazema, chinelos de couro confortáveis.

Estava pronto.

Na avenida, em meio àquela onda formada pelo tapete branco, ele viu o próprio Ghandi à sua frente.

Perplexo, não tirou os olhos daquele que era um dos maiores ícones da paz.

De repente, Ghandi percebe a insistência do olhar curioso do menino, vira-se em sua direção e levanta o saiote...

Foi o último ano de Joca no afoxé.

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O almoço de Otacílio
Otacílio dividia o ano em 3 partes: "antes do carnaval, o carnaval em pessoa, e depois do carnaval".

Nada, nem a Santa Madre Igreja, conseguia afastá-lo de seguir o Bloco do Jacu e quem mais estivesse passando pela Avenida Sete.

Mas um dia se casou.

Para seu desespero, a mulher ("a patroa", como a ela se referia) era católica dos quatro costados, não arredava pé da sacristia nem admitiria jamais que Otacílio se entregasse à esbórnia.

No primeiro dia de carnaval Otacílio avisou à patroa: "vou comprar peixe pro almoço".

Voltou nas Cinzas, quando a família já estava de luto, chorando seu desaparecimento.

Tinha nas mãos duas latas de sardinha.

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Ficou difícil
Na falta de fantasia, ela vestiu um biquíni branco, amarrou na cintura um tecido azul brilhante e se maquiou como sereia.

Nos pés, sandálias havaianas - somente até metade do percurso porque a cerveja era liberada e no meio da fanfarra uma delas escorregou e se perdeu.

E lá se foi a sereia, de biquíni branco, um pé calçado e o outro não.

Preocupada com os cacos de vidro no chão, desprotegeu-se a bombordo e se deixou beijar por um "pirata".

Encerrado o beijo, deram-se as mãos e seguiram a fanfarra.

Mais à frente, numa tentativa de diálogo, o "pirata" empacou na primeira sílaba e dela não saiu, navio de âncoras arriadas.

Era gago, o pirata, gaguíssimo. 

Para a sereia restaram um biquíni branco e um pé de chinelo.

***

Era ele
Todo Carnaval a funcionária pública Cris era deslocada para trabalhar em um dos postos da Prefeitura em apoio à folia.

Final de expediente do domingo e ela ainda esperava o marido...

Perguntava toda hora ao segurança se ele tinha chegado. 

Cansada, decidiu sair. 

Escornado nos degraus estava lá seu esposo.

Ainda vestia restos de uma fantasia de bloco travestido.

O cabelo, desgrenhado, tinha alguns prendedores.

Batom borrado por todo o rosto. 

Nas mãos, uma pistola de água, já vazia.

- Olha ele aqui, por que não me avisou? - perguntou ao segurança!

- Isso aí é seu marido?

***

Sem aperto de mãos
Luizão e Tito foram colegas, parceiros, amigos, irmãos durante o fundamental e ensino médio.

Há muito não se viam.

Segunda-feira de Carnaval, quase meia-noite, coincidentemente recorreram ao Beco do Mijo durante a passagem de um bloco afro.

Trocaram um "oi" entusiasmado, mas sem aperto de mão ou abraço.

Balançaram, guardaram de volta e retornaram sem graça para a Praça do Poeta.

Tomaram diferentes rumos.

Ah, a poesia!

Há poesia!

***

Traído pelo coração
O Bloco: Filhos de Ghandi.

Objetivo: beijar muito.

Estratégia: dezenas de colares.

... Mas, no segundo dia de desfile se apaixonou por uma Muquirana.

Felizes para sempre?

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Receba!
Lembram quando no carnaval de Salvador todo mundo usava uma fantasia chamada mortalha (uma espécie de camisolão de fantasma, só que colorido)?

Pois lá ia um bloco descendo a ladeira de São Bento, quase na Praça Castro Alves, quando uma foliã levanta a mortalha, arranca o absorvente e joga para trás (sem nem olhar).

O folião que viu a cena, fechou os olhos.

Ainda hoje imagina a surpresa de quem vinha atrás e recebeu o pacote pelo meio da cara.