O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) está desenvolvendo, em seu Laboratório de Processos Químicos e Tecnologia de Partículas, um novo medicamento contra a leishmaniose, doença endêmica no Brasil causada por protozoários e transmitida pela picada de certas espécies de mosquito.
A alternativa, mais eficiente e menos dolorosa que o tratamento atual (injetável), já gerou uma patente para o Instituto e se baseia na tecnologia de nanocarreadores coloidais, cuja liberação controlada visa diminuir os efeitos colaterais do fármaco.
Thais Aragão Horoiwa, pesquisadora responsável pelo projeto, explica que a tecnologia funciona como uma espécie de "cavalo de Tróia".
O antiomoniato de meglumina (comercialmente conhecido como Glucantime), droga utilizada no tratamento da leishmaniose, é encapsulada em nanoestruturas poliméricas compostas por maltodextrina, um gliconjugado de que o protozoário necessita em seu metabolismo.
“Acreditamos que o uso da maltodextrina faz com que o medicamento atinja preferencialmente as células infectadas às saudáveis, porque, em tese, o açúcar iria preferencialmente para as células que o estão demandando mais”, disse.
Atualmente, no Brasil, o tratamento da doença é oferecido pelo SUS e feito de forma injetável. Em termos simples, o paciente recebe diariamente, por um período de 20 dias, injeções com doses de 10 a 20 mg de um medicamento comercialmente conhecido por Glucantime® (antimoniato de meglumina), única droga autorizada no Brasil para tratamento da doença.
A aplicação é feita diretamente no local onde o protozoário está instalado – ou seja, na ferida.
“O tratamento é extremamente doloroso e depende da internação do paciente para a aplicação do medicamento e controle dos efeitos colaterais, que são intensos. Dependendo da dosagem aplicada, a pessoa pode ir à óbito, porque a substância injetada é tóxica a órgãos vitais como rins, fígado e coração”, explica Thais.
Na prática isso significa três coisas. Primeiro: o tratamento é oneroso ao sistema de saúde, que tem uma série de gastos ao manter o paciente internado por muitos dias, tanto relacionados à mão de obra quanto a recursos. Segundo: muitos pacientes abandonam o tratamento na metade, o que pode gerar complicações – por exemplo, o desenvolvimento da doença em suas formas mais graves, como a leishmaniose visceral, que ataca os órgãos internos do corpo – e mantém o indivíduo como hospedeiro do parasita, que é transmitido por um mosquito. E terceiro: uma doença que em princípio não leva à morte pode ser complicada pelo uso do seu próprio remédio.
“O tratamento é extremamente doloroso, além de depender da internação do paciente para a aplicação do medicamento e controle dos efeitos colaterais, que são intensos e podem até levá-lo a óbito”, conta Thais.
“A alternativa que propomos visa um tratamento tópico com pomada ou creme, evitando que o medicamento caia na corrente sanguínea, e com aplicação feita pelo próprio paciente. A simplicidade do tratamento diminuiria o gasto de recursos públicos e evitaria também a evasão do tratamento.”
Mosquito vetor da Leishmaniose (phlebotomine sandfly?). Foto: Organização Mundial da Saúde
Os testes de liberação e permeação realizados até o momento mostram evidências de que o medicamento, indicado para tratamento da leishmaniose cutânea, não tem penetração na corrente sanguínea – evitando efeitos colaterais em órgãos internos – e que sua liberação é sustentada na ferida, crescendo ao longo do tempo, o que possibilitaria uma aplicação única.
Atualmente, o fármaco passa por testes pré-clínicos no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), em que se verificará seu real efeito sobre o parasita e também as células saudáveis do organismo.
Segundo a Drugs for Neglacted Diseases initiative (DNDi), cerca de 1 milhão de novos casos de leishmaniose cutânea são computados por ano no mundo, enfermidade que está no rol de doenças negligenciadas definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – assim nomeadas por serem comuns em locais com maior dificuldade de acesso ao saneamento básico e em populações marginalizadas, de menor poder aquisitivo, condições menos propícias ao investimento da indústria farmacêutica.
Leishmaniose é o nome utilizado para identificar um conjunto de doenças infectocontagiosas causadas por protozoários do gênero Leishmania.
Comuns em humanos, mas também em animais (especialmente cães), a doença pode se manifestar de diversas formas, sendo que na mais comum – chamada tegumentar ou cutânea –, o protozoário se instala nos macrófagos (células de defesa) da epiderme e faz com que o paciente desenvolva feridas na pele e mucosas.
A pesquisa desenvolvida por Thais visa a criação de um medicamento para uso tópico (pomada ou creme) que possa ser aplicado pelo próprio paciente e dispense a internação em hospitais, uma alternativa também menos dolorosa que a atual. A tecnologia é baseada no uso de nanocarreadores poliméricos coloidais, sistemas capazes de levar medicamentos diretamente até o local do organismo onde devem agir, construídos em uma escala de tamanho de 1 nanômetro – ou 1 bilionésimo de metro.
“Essas nanoestruturas são formadas por polímeros biodegradáveis que carregam, como uma cápsula, o medicamento até o foco da doença, ou seja, o protozoário hospedado na pele”, explica Thais. “O grande diferencial do projeto é o uso de um açúcar, a maltodextrina, para o carreamento do antimoniato de meglumina”.
Thais conta que a tecnologia funciona como uma espécie de “cavalo de Tróia”. Isso porque o protozoário, alojado na epiderme, apresenta receptores em sua parede celular que reconhecem moléculas de glicoconjugados produzidas a partir de açúcares recebidos pelas células. “O uso da maltodextrina faz com que o medicamento atinja preferencialmente as células infectadas, porque o colocamos dentro de uma molécula que o parasita necessita em seu metabolismo. Em tese, o açúcar iria preferencialmente para as células que o estão demandando mais”, explica a técnica.
Outra inovação do projeto está no fato de ela basear-se em uma dispersão inversa em que nanoestruturas hidrofílicas estão envoltas em um silicone biodegradável, já utilizado pela indústria farmacêutica em outros medicamentos. O silicone é biocompatível e um facilitador da interação do medicamento com a pele porque reduz a tensão superficial, melhorando a espalhabilidade e a permeabilidade dos componentes da formulação através das células epiteliais e também promovendo a entrega do fármaco em camadas mais profundas da pele.
A formulação inicial passou por dois testes principais no IPT: o de liberação e o de permeação cutânea. O primeiro comparou o perfil de liberação do fármaco encapsulado na pele com o fármaco livre, utilizado nas doses injetáveis do tratamento atual. Resultado: ao passo que o fármaco livre é liberado de uma só vez, tendo uma atuação por tempo limitado no organismo, o nanocarreador promove uma liberação sustentada, que cresce ao longo do tempo.
“Isso pode indicar que, no caso do uso de uma pomada, por exemplo, o paciente poderia fazer um curativo e deixar o medicamento agir na ferida por um tempo mais prolongado, sem a necessidade de reaplicação recorrente da dose”, afirma a técnica.
O desafio no segundo teste era entender se o fármaco encapsulado e de forma tópica conseguiria passar pelo estrato córneo da pele, camada que recobre a epiderme (onde está o protozoário). Para tal, a formulação foi aplicada em uma membrana animal semelhante à pele humana.
“O fármaco encapsulado não apenas penetra nas camadas mais profundas da pele, como se mantém mais concentrado do que o medicamento livre. Apesar de uma parte considerável ficar retida no estrato córneo, também consideramos o fato de que, quando a doença está instalada, observam-se feridas onde essa camada superior não está mais presente. Como o medicamento seria aplicado diretamente na epiderme, espera-se que a eficiência seja ainda maior”, avalia ela.
Entraves
Embora a tecnologia seja promissora e cerca de 1 milhão de novos casos de leishmaniose cutânea sejam computados por ano no mundo, ainda assim o medicamento deve encontrar entraves para se tornar realidade no Brasil.
Isso porque a enfermidade faz parte do rol das chamadas doenças negligenciadas: tropicais, endêmicas, e concentradas em populações de baixa renda de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina. Comuns em locais com maior dificuldade de acesso ao saneamento básico – onde o mosquito transmissor tem mais chances de se proliferar – e, portanto, em populações marginalizadas, de menor poder aquisitivo, são poucos os recursos destinados a pesquisas, e menor ainda o interesse das indústrias farmacêuticas em se arriscar a investir em medicamentos que podem não dar retornos financeiros satisfatórios.
Embora os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde apontem uma redução da doença no Brasil nos últimos dez anos – foram 19.395 casos em 2015, 27% a menos do que em 2005 –, a frequência da doença em áreas remotas, também afastadas dos serviços de saúde como hospitais e clínicas, torna difícil estimar a verdadeira incidência da leishmaniose no país e no mundo. Pior: a inacessibilidade ao tratamento ou seu abandono por conta das dificuldades aumentam as chances de a doença se proliferar, uma vez o número de hospedeiros do parasita não diminui.
Presente no 6º Congresso Mundial em Leishmaniose realizado na Espanha em 2017, Veliz aponta ainda outros problemas relacionados à doença na atualidade.
Em locais em conflito bélico, como Sudão e Síria, a precariedade das condições sanitárias tem causado um aumento dos casos de leishmaniose – e a situação descamba para um aumento de registros também em regiões não endêmicas, que recebem refugiados do conflito. No Brasil, o desmatamento e a urbanização também têm levado o foco da doença para os centros urbanos, uma vez que o número de hospedeiros aumenta nesses locais.
“Usamos medicamentos feitos há mais de 70 anos. O desenvolvimento de novas estratégias quimioterápicas, eficazes, menos tóxicas e de baixo custo, são prioridade em um cenário mundial de mais de 350 milhões de pessoas expostas ao risco de contrair a leishmaniose”, opina o pesquisador.
Se apenas melhorar as condições do doente ou o cenário da doença não bastam para a indústria, Thais aponta que o maior trunfo para o desenvolvimento do novo medicamento pode ser a própria forma de tratamento atual. Isso porque a longa internação, a disponibilidade de vagas nos postos de saúde e os recursos dispendidos para curar a leishmaniose, tanto com mão de obra quanto com medicamentos, podem tornar o tratamento tópico mais vantajoso financeiramente.
“Pensando em termos de processo, é provável que seja mais caro para a indústria farmacêutica produzir o novo medicamento baseado em nanotecnologia. Porém, em termos de políticas públicas, os gastos com a doença seriam drasticamente reduzidos. Programas governamentais que priorizem o desenvolvimento de alternativas terapêuticas para o tratamento de doenças negligenciadas podem incentivar a indústria a produzi-lo”, opina Thais.
Por último, a técnica chama atenção ainda para o fato de que se trata de uma doença complicada para a sociabilidade do paciente. “É importante lembrar que as feridas surgem inicialmente no local da picada do mosquito, geralmente áreas expostas do corpo, como membros e rosto. Como são lesões de aparência que remetem a doenças transmissíveis, mesmo não o sendo, é comum as pessoas sofrerem preconceito ou enfrentarem constrangimentos em espaços públicos. A leishmaniose não é somente um problema grave de saúde pública. Por tudo que envolve, é um problema sócio-econômico”, finaliza.