Jolivaldo Freitas

Jorge Amado dos meus anjóis

Lá no Largo da Boa Viagem tinha ou talvez ainda exista, um bar chamado Panzuá, que nos anos 60 e 70 do século passado era alegria dos cachaceiros e onde todo final de semana a porrada corria solta.

Depois, quando inventou de colocar pizza no cardápio – coisa que na época era difícil de encontrar em Salvador – começou a dar uma de bar chique e somente petroleiros e diretores das fábricas de tecidos, óleo de mamona, biscoito, café e bombons podiam se dar ao luxo de frequentar o ambiente.

Não existia opção, a não ser a Padaria Boa Viagem e a Panificadora e Despensa Pery, esta na Rua da Imperatriz.

Foi lá que pela primeira vez, no meio de uma briga envolvendo a garotada da Boa Viagem, Mont Serrat e Barreiro, contra o pessoal da Ribeira que decidira invadir nosso enclave, para paquerar nossas garotas, ouvi os termos capadócio e capitão da areia.

A mulher do dono do bar chamou a polícia e quando a viuvinha apareceu (naquele tempo o carro da civil era pintado de preto e branco) e ela no meio de tantos rapazes decidiu apontar para mim e disse ao subdelegado que eu era capadócio e capitão da areia.

Fiquei intrigado que diabos eram estes termos e fui procurar saber do subdelegado que, me ameaçando dar uns bolos de palmatória, para deixar de criar confusão, me perguntou se eu nunca tinha ouvido falar de Jorge Amado e do livro que levava o nome do título que a dona do Panzuá me “homenageava”.

Foi então que para sempre descobri o escritor Jorge Amado. Comprava seus livros escondidos, pois à época era proibido sua leitura nas casas de família. Eu lia, relia, ficava com medo de nascerem pelos nas mãos, do pecado, de ficar fraco e amarelo, mas me deliciava e escondia o livro embaixo do colchão de crina de cavalo ou de palha (ainda não tinham inventado o colchão de molas), mas hoje tenho certeza que minha mãe quando ia arrumar o quarto o encontrava e fingia que nada sabia.

Jorge Amado até hoje é meu escritor favorito e o livro que mais gosto dele nada tem a ver com a Bahia e se chama “Farda, Fardão, Camisola de Dormir”, que tem como tema um acadêmico da Academia de Letras. É que acho o estilo leve, livre e solto. Uma obra de mestre.

Um dia, com os hormônios em ebulição e enlouquecido pelas pernas da professora de francês que quando ia ao quadro negro a balbúrdia da sala do Colégio Paulo Américo era interrompida e fazia silêncio como se fosse para ouvir La Mer, na voz de Charles Trénet e no colo de Brigitte Bardot (até hoje não sei falar francês por culpa da minissaia dela) deixei a aula terminar e perguntei na maior malícia e cara de pau, levado pela necessidade biológica:

- Professora, a senhora já leu Jorge Amado?

Ela me olhou meio assustada – também citar Jorge Amado na época era sinal de ousadia, por ter sido o primeiro a falar no nome puta, sacanagem, merda, braguilha, cacete e tantas outras palavras que eram consideradas chulas ou de baixo calão e que até hoje se diz, mas não se deve escrever numa crônica de respeito, como esta, para não ofender a tradicional família baiana –e, juro, quase que suspirando ela respondeu:

- Ah, Jorge Amado dos meus anjóis.

O que significava dizer que Jorge Amado era uma das suas preocupações. E quando tentei falar com ela sobre as temáticas e a ousadia de Jorge ela me cortou.

- Tome tenência menino, que te mando para a diretoria.

Nunca esaqueci a professora de francês, que me jogou para escanteio, me colocou no devido lugar, mas em compensação tirei partido da ousadia do velho Amado (certa vez contei para ele e riu às gargalhadas) com muitas primas e colegas.

Jorge Amado não só inventou a baianidade, como lhe deu forma, régua e compasso. Como diria um personagem de Jorge, foi ele quem tirou meu cabaço literário. Me jogou nesta vida de escrevinhador.