Opinião

Avos, oitavos e centavos

Um oitavo representa uma fração vinculada a metade da metade da metade

Foto: Ilustração: Google FX IA

Uma maneira antiga de se referir a algumas frações é a de se escrever tais números, separados entre numerador e denominador, seguido da palavra avos.

A origem do termo perdeu-se no tempo, e um dos poucos registros mais antigos encontra-se na obra “Tratado da Pratica d’Arismetica” (1519) do matemático português Gaspar Nicolas (? - c. 1550), que consiste na primeira obra de aritmética prática de autoria lusa e publicada em Portugal com 11 reedições (além da primeira, de 1519, cujo exemplar pertence a Faculdade de Ciências do Pôrto, seguiram-se as de 1530, 1541, 1559, 1590, 1592, 1594, 1607, 1613, 1679 e 1716).

Pouco se sabe sobre o autor, embora existam indícios de que seja oriundo do norte de Portugal, mais precisamente de Guimarães, e tenha, talvez, origem judaica. As “cousas” de que se trata a obra referem-se a “somar, diminuir e multiplicar, e repartir, e somar quebrados, e diminuir quebrados, e multiplicar quebrados, e repartir quebrados”.

Tal obra, fortemente inspirada no livro “Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalita” (1494) do matemático e frade italiano Luca Bartolomeo de Pacioli (c. 1445 - 1517), inicia apresentando nas primeiras folhas (fólios), as tabuadas de 1 até 10 (chamada de tavoada pequena) e de 11 a 30 (denominada grande), seguidas das então denominadas cinco operações aritméticas básicas: numerar, conta de assomar, conta de demenuir, conta de multiplicar e repartir, indicadas no prefácio.

Na primeira edição, na página 15, há uma representação fracionária 117/143 seguido do termo avos de ceytill, ou seja, vinculado a números quebrados (indicado pelo termo avos). Tal uso ocorre apenas nas línguas portuguesa e espanhola, prática esta que foi provavelmente inspirada pelos árabes, que conquistaram a Península Ibérica em 711 da nossa era, e são muito conhecidos por transações mercantis, que notadamente necessitam de matemática. Mais adiante no texto, Nicolas se concentra em explicar regras de mistura envolvendo ligas de prata na feitura de moedas, e descreve frações com o uso de avos.

Não há uma explicação razoável, sequer aplicação do uso do termo avos antes da obra de Nicolas. O físico aeroespacial brasileiro Aguinaldo Prandini Ricieri (n. 1957) defendeu a hipótese que o termo tenha origem no símbolo muçulmano “Rub El Hizb”, que segue o formato de um octograma (um polígono que forma uma estrela de oito pontas), representado por dois quadrados sobrepostos e girados de 45º, usado como marcador para um final de capítulo, muito comum no Alcorão, o livro sagrado do Islã.

Em árabe, “rub” significa “um quarto”, enquanto “?izb” (cujo plural é “a?z?b”) se traduz como “um grupo”. Desta forma, “Rub El Hizb” significa algo como um quarto de partilha e serve para facilitar a recitação, outro significado para o nome Alcorão. Tal obra é dividida em 60 “a?z?b”, ou seja, apresenta 60 octogramas ao fim de cada parte do livro sagrado. Em latim se escreve o número ordinal oitavo como octavus, que tambem tem forte influência nas ditas oitavas, vinculadas as notas musicais, e tema de enorme predileção árabe – pois, é preciso ressaltar, o Alcorão é recitado, ou seja, quase que cantado.

Um oitavo representa uma fração vinculada a metade da metade da metade. O uso das frações remonta ao início das civilizações, mas apenas os árabes começaram a representá-la com um traço horizontal, muito utilizado hoje. Os nomes das frações tambem refletem um fato curioso: um meio, um terço, um quarto, um quinto, um sexto, um sétimo, um oitavo, um nono e um décimo. De fato, o uso da expressão um oitavo reforça o uso de avos como de origem árabe, pois apenas para frações cujos denominadores são superiores a dez é que se costuma fazer referência a este termo: um onze avos, um doze avos, quatro treze avos... e assim por diante. É fato que não levou muito tempo para que tal uso de avos representasse, ao menos no Brasil, em Portugal e na Espanha, aplicações como na palavra centavo.

A centésima parte da moeda de quase todos os países denomina-se centavo. No caso brasileiro, sendo o real adotado em 1º de julho de 1994, e escrito como R$ 1,00, um centésimo de um real é denominado como um centavo de real, ou R$ 0,01.

Centavo provem do latim centum, significando cêntimo (ou seja, um centésimo, escrito como 1/100 ou ainda 0,01), acrescido do uso de avos no sentido de parte, cujo termo, por antiguidade, remonta a obra de Nicolas, ao menos no que tange seu uso em matemática. Curiosamente, o uso do termo ceitil precedido de avos na obra já pode ser vinculada a centavos, pois se refere a uma moeda portuguesa criada por D. Afonso V (1432 - 1481), rei de Portugal, sendo ceitil o termo a significar um sexto daquela moeda, assim como centavo representa um centésimo de real no Brasil.

Na cultura popular portuguesa há a expressão “até ao último ceitil”, significando pagar ou ainda gastar tudo. É preciso dar sentido as expressões e termos utilizados nas escolas, sendo estes avos, oitavos ou centavos. Pode parecer insignificante a princípio, mas um provérbio alemão, adaptado, diz que: “quem não se importa com centavos não é digno de possuir um real”. Há detalhes em matemática que necessitam de maior explicação para torná-la mais agradável e compreensível a qualquer um.

__________

Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e pesquisador do SENAI-CIMATEC