Em Brumado, que fica lá onde Judas perdeu as botas e São Pedro não ouviu o galo cantar, os mortos estão preocupados com aqueles que ainda irão morrer. Ou a prefeitura do município aumenta o tamanho do terreno para caber mais corpos ou será necessário fazer o sepultamento de um sobre o outro.
Já imaginou você mortinho da silva colado cara a cara, bafo a bafo pela eternidade com aquele seu vizinho chato, com o cara que roubou sua mulher, com o sócio que lhe passou a perna ou, para cúmulo do desespero, com a mulher chata que você teve de aturar em vida? É outra morte.
A prefeitura do município parece que quer fazer um puxadinho no cemitério, bater laje ou coisa assim, mas embora a União tenha dado o terreno, um morador vivo (quer dizer, que não sofreu ainda o passamento) diz que o terreno é seu. Tem documento e tudo e jura pela mãe mortinha que é coisa comprada e de papel passado e autenticado.
Você leu, é claro, o clássico de Érico Veríssimo “Incidentes em Antares” em que morrem sete pessoas na cidade fictícia de Antares. Os coveiros estão em greve e os defuntos em protesto andam pela cidade contando os podres de todo mundo.
O enredo mostra a briga entre duas facções políticas da cidade: Campolargos e os Vacarianos. Os mortos ficam “vivos” e mostram o podre existente em cada baú das famílias. Você já viu o que aconteceria se nossos mortos dessem as caras e fossem para os palanques. Não escapavam prefeitos, delegados, senadores, empresários, deputados, comunistas, fascistas, donas de casa, babalorixá, pescador, axezeiro, amolador de tesoura, piloto, taxista, vendedora de acarajé ou dono de escola particular... ninguém. Nem eu, nem a senhora. Muito menos a sogra e a vizinha ou o cachaceiro da esquina e nem o doutor.
Recentemente aqui em Salvador foi relatado que os mortos estavam sendo retirados dos cemitérios públicos privados ainda devéz, ou seja: fora de época. Verdes. O certo, com base nas ordenações sacerdotais (pode não estar no contexto, mas gosto da pompa da frase); com base nas especificações sanitárias, o cadáver tem de ficar pelo menos dois anos embaixo da terra ou nas carneiras, até que os morotós, os vermes, os gusanos e as larvas comam toda carne e só deixem ossos e nervos. O cabelo não entra no repasto, bem como os dentes, ainda mais se for dente de ouro ou com apliques, incrustações em diamantes, como é do gosto de sorrir dos músicos de pagode e axé, novos ricos. Os cemitérios estavam retirando os restos mortais ainda cheios de sustância e proteínas para dar lugar ao morto que chegava quentinho, da hora.
Deu até pau entre as empresas que lidam com a coleta dos ossos, pois também existiam, no Cemitério de Quintas dos Lázaros, toneladas de ossos esperando a vez de serem cremados. E muito osso ainda com bifinho. Na época eu era chefe de reportagem da TV Bahia (péssimo chefe por sinal, tanto que não coloco no meu currículo) e mandei a repórter Camila Marinho e o repórter cinegrafista Joselito Conceição irem atrás do assunto. Ela pisou na cova e afundou o pé no esqueleto. Zelito, capoeirista que é, quando ia cair dentro da cova deu um salto, um verdadeiro aú acrobático sem perder a câmera e gritou para o morto:
- Não me leve ainda não, seu moço!
Camila não me perdoa.
Eu é que não quero morrer em Brumado. Aliás, se for para morrer que seja em Paris, perto do Montparnasse onde está Sartre ou até mesmo no Recoleta, para ficar junto de Evita. Don‘t cry for me soteropolitanos.