O Brasil está vivendo uma explosão de jogatina, impulsionada pela proliferação das apostas esportivas e cassinos virtuais. O que antes era considerado um terreno nebuloso da economia informal, hoje se transforma em um setor bilionário legitimado pelo Congresso Nacional, por meio da aprovação da Lei nº 14.790/2023. A medida regulamentou as apostas de quota fixa — conhecidas como “bets” — e abriu caminho para cassinos online operarem legalmente no país.
Sob o argumento de que era necessário regulamentar um setor que já operava informalmente e aumentar a arrecadação federal, parlamentares aprovaram a taxação das “bets” e abriram o mercado para operadoras nacionais e internacionais.
A CPI das Apostas Esportivas, conhecida como CPI das Bets, instalada no Senado, poderia — e deveria — ser mais do que um palco de escândalos: deveria ser o momento de autorreflexão do próprio Congresso Nacional sobre a forma apressada, permissiva e desarticulada como legalizou a jogatina no Brasil.
Ora, parte considerável dos problemas que as famílias brasileiras hoje enfrentam, a partir da jogatina desregrada, é justamente a existência da estrutura legal permissiva que os congressistas criaram.
A lei sancionada permite, por exemplo: publicidade irrestrita de sites de aposta, inclusive em eventos com grande audiência de jovens e a ausência de limite de tempo ou valor de apostas por usuário.
Não se ouve a esperada autocrítica, inexiste uma proposta concreta de endurecimento das regras, ou mesmo mobilização para criar mecanismos de fiscalização sanitária, educacional ou comportamental.
O Legislativo tratou a legalização como uma fórmula arrecadatória e se omitiu diante das implicações sociais. A CPI, para ser reconhecida como séria, deveria começar por admitir isso. Deveria reconhecer que falhou com o cidadão comum, com os jovens atraídos por promessas ilusórias de lucro rápido, e com as famílias destruídas por uma dependência silenciosa.
A CPI das Bets poderia ter sido o começo de um mea-culpa coletivo e a porta de entrada para uma agenda legislativa de responsabilidade social, com foco em regulação séria, educação digital e tratamento clínico para dependentes.
Estudos e casos crescentes apontam que o vício em jogos online está levando famílias à ruína, agravando transtornos psiquiátricos e, em casos extremos, culminando em suicídios.
Segundo pesquisa da plataforma SimilarWeb, o Brasil é o segundo maior mercado mundial de acessos a sites de apostas esportivas, atrás apenas dos Estados Unidos.
Dados da Associação Brasileira de Apostas Esportivas (Abaesp) apontam que, em 2023, o mercado movimentou R$ 12,8 bilhões. Estima-se que mais de 15 milhões de brasileiros já tenham feito apostas online, com crescimento acelerado entre jovens de 18 a 35 anos.
Ao mesmo tempo, há um aumento preocupante nos relatos de transtornos relacionados ao jogo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu, desde 2018, o transtorno do jogo como uma condição de saúde mental. A Fiocruz, em levantamento nacional, já identificava em 2022 sinais de dependência comportamental em cerca de 3% da população brasileira — número que pode estar subestimado, dado o crescimento recente das plataformas.
O vício em jogos de aposta online não é apenas uma questão de autocontrole: é uma condição clínica com impactos devastadores. O sistema de recompensas usado pelas plataformas é projetado para manter o jogador engajado por horas, explorando mecanismos neurológicos semelhantes aos do vício em substâncias químicas.
Clínicas de reabilitação já relatam aumento de internações motivadas por dependência em jogos virtuais — fenômeno antes raro no país.
Além das consequências individuais, o vício em jogo tem um efeito dominó: destrói famílias, dissolve vínculos afetivos, leva ao comprometimento da renda familiar e, em muitos casos, ao endividamento crônico. Pesquisa da USP (2023) revelou que mais de 40% dos jogadores compulsivos tiveram prejuízos severos na vida familiar e profissional.
A experiência internacional mostra que a legalização dos jogos pode coexistir com políticas públicas robustas de mitigação de danos — algo ainda ausente no Brasil.
No Reino Unido, por exemplo, a Gambling Commission exige que operadoras invistam parte da receita em programas de reabilitação e educação sobre o vício. Também há limites obrigatórios de perda diária e sistemas automáticos de exclusão voluntária (self-exclusion).
Na Itália, que enfrentou uma epidemia de vício em jogos no início dos anos 2010, o governo proibiu a publicidade de apostas em horário nobre e nas camisas de clubes de futebol. A Austrália, por sua vez, implementou ferramentas digitais obrigatórias de rastreamento de comportamento do jogador, para detectar sinais precoces de compulsão.
O Brasil, ao legalizar as apostas sem exigir mecanismos semelhantes, corre o risco de repetir os erros de países que tardaram a reagir — com consequências já visíveis nas clínicas, tribunais e lares brasileiros.
A legalização dos jogos online no Brasil expõe um dilema clássico das políticas públicas: como equilibrar os interesses arrecadatórios do Estado com a proteção da saúde mental da população?
O país não pode seguir tratando o vício em jogos como uma externalidade ignorável. É necessário criar uma legislação complementar que imponha limites, financie tratamento psicológico, proíba publicidade agressiva e responsabilize as empresas por danos causados.
A sociedade brasileira, marcada por profundas desigualdades, é especialmente vulnerável a esse tipo de exploração econômica. O jogo, que se vende como entretenimento, está se tornando, para muitos, uma armadilha fatal. E quando a aposta passa a custar vidas, o lucro deixa de ser justificável.