A humanidade tende a classificar tudo, inclusive a si mesma. Isto não é algo novo, e de certa forma remonta ao clássico diálogo Timeu (Timæus, escrito por volta de 360 a.C.) do filósofo e lógico grego Platão (c. 428 – 347 a.C.), onde o personagem Timeu de Lócrida, seguidor da escola pitagórica, havia classificado as criaturas vivas entre animais e plantas, um tipo de classificação simplista, por ser binária e, portanto, incompleta.
Em política tende-se a separar defensores partidários entre esquerda e direita, algo tambem dual ou binário. Tal prática tem algumas origens históricas, como descrito a seguir. No entanto, é fato que cerca de 85% da humanidade é destra, pelo menos na maioria das tarefas que realizam, e os demais, canhotos. Ambidestros são raros. O termo provém do latim dexter ou ainda dextrum, no sentido de habilidoso. Os verbos destreza e destroçar provém desta origem, no sentido de alguém competente, fazendo ou desfazendo.
Chimpanzés, gorilas e outros primatas não-humanos não demostram tendência consistente para o uso de uma mão ou outra, o que significa que a lateralidade na humanidade, este predomínio do uso de lados específicos do corpo, como braços e pernas, provavelmente surgiu algum tempo depois que as linhagens humana e de primatas seguiram seu caminho evolutivo, entre cerca de 5 milhões a 7 milhões de anos atrás.
De fato, em termos evolutivos, o menino Nariokotome ou ainda Turkana, um esqueleto quase completo de um primitivo Homo ergaster de 1,6 milhão de anos encontrado no Quênia pelo paleontólogo queniano Kamoya Kimeu (1938 - 2022) era destro. Descoberto em 1984, estima-se que esta criança faleceu entre 7 e 11 anos, e sua destreza pode ser inferida pela presença de inserções ósseas mais profundas dos músculos deltóides na clavícula e pelo maior comprimento da ulna, ambos da região direita.
Há um belo registro do uso das mãos em pinturas rupestres na província de Santa Cruz, Argentina, de pelo menos 7.300 anos. Numa dada região da “Cueva de las Manos”, ou “Cova das Mãos”, existem impressas nas paredes 829 mãos esquerdas e 31 mãos direitas, a princípio, contrário ao que se espera para o uso preferencial das mãos considerando a distribuição entre humanos. A explicação é que a maioria dos membros desta tribo primitiva sul-americana segurava um tubo feito de ossos para pulverização manuseado com a mão direita, aspergindo tinta feita de pigmentos minerais extraídos do solo e das rochas com tons de ocre, vermelho, roxo, amarelo, branco e preto diluídos em água, urina ou mesmo sangue. Ao soprar este fluido com a boca ou, mesmo com ossos e gravetos vazados, imitando canudos, sobre a mão esquerda na pedra, conseguiam a impressão negativa desta de modo similar à conhecida técnica dita estêncil.
Já o enquadramento partidário entre direita e esquerda provém da Revolução Francesa de 1789, e do império napoleônico que o sucedeu tempos depois, quando os membros do parlamento francês se dividiam entre os partidários do rei (ou depois do imperador), sentados à direita do presidente da Assembleia Nacional, e os simpatizantes da revolução (ou da república), à sua esquerda. Ainda assim, tal divisão não se referia exatamente a algum posicionamento político a princípio, e sim meramente à distribuição das cadeiras parlamentares de uma legislatura. Tal simbolismo remonta a interpretações vinculadas a passagens bíblicas de estar ao lado direito do Criador, significando honra e prestígio.
Diverso do que se pode concluir, não há uma mão “dominante” sobre a outra, pois ambas têm papéis diferentes e igualmente importantes. Por exemplo, em pessoas destras, a mão direita pode ser usada para tarefas que exigem maior destreza manual, enquanto a mão esquerda pode desempenhar o papel mais mundano, mas ainda assim crucial, de apoiar um objeto, com ao manusear um garfo e uma faca.
Um probleminha curioso que cabe na palma de uma das mãos é o que segue: numa sala com 100 pessoas, 99% são destros. Quantas pessoas destras teriam de sair da sala para reduzir esse percentual para 98%?
Cabe aqui uma breve reflexão sobre a situação. Em primeiro lugar, isso significa que existem 99 pessoas numa sala destras, e uma, não.
Repetindo a questão, pergunta-se: quantas pessoas destras teriam de sair da sala para reduzir esse percentual para 98%?
Dito de outra forma, isso significa que a única pessoa não destra, ou seja, canhota, na sala, teria que representar 2% das pessoas presentes, esperando que algumas destras saiam. Quantos destros são necessários se ausentar para que existam dois por cento de canhotos, de modo a perfazer cem por cento, considerando um número menor de pessoas na sala?
Aqui sugere-se uma pausa a(o) leitor(a) para refletir sobre o problema, que tem uma solução curiosa, ou no mínimo surpreendente.
Bem, a resposta é: deve haver 50 pessoas na sala, considerando que apenas uma dela é canhota.
Dito de outro modo, isso significa que precisamos apenas de 50 pessoas na sala, sendo uma não destra (ou canhota), além de 49 destras. Isso faria com que a porcentagem de destros na sala fosse de 98%.
Para que isto seja possível, isso significa que 50 destros deverão sair da sala, de modo a satisfazer a condição do problema.
Seria esta uma resposta intuitiva, ou surpreendente? A matemática, em geral, é admirável por realçar com clareza aspectos curiosos, ou mesmo práticos.
No universo, espera-se que exista um equilíbrio em diversos aspectos da matéria. Por exemplo, partículas podem girar no sentido horário ou anti-horário, ou seja, com giros à esquerda e direita, algo que os físicos relacionam a um princípio denominado de paridade. No entanto, desde o Prêmio Nobel de Física de 1957, dos laureados físicos chineses Tsung-Dao Lee (1926 - 2024) e Yang Chen-Ning (n. 1922), sabe-se que a paridade não se mantém nas interações de partículas mediadas pela força eletrofraca, uma das quatro forças fundamentais. Dito de outra forma, partículas como os quarks aparentemente se distinguem entre esquerda e direita, não sendo igualmente distribuídos, isto é, são partículas não exatamente simetricamente divididas, havendo uma predominância de que girem mais para a esquerda.
Curiosamente, a proposta de Lee e Chen-Ning baseou-se num experimento crucial da física chinesa Chien-Shiung Wu (1912 - 1997), colega de ambos. Infelizmente, o comitê Nobel decidiu não dividir o prêmio entre os três. Ela acabou sendo laureada apenas com o Prêmio Wolf de Física em 1978.
Em geral, a matemática é um tipo de saber que pode causar estranhamento para uns, e indiferença para outros. Mas ela é mais do que isso, pois pode abranger interesses do mais diversos, dentre a pluralidade de pensamentos e desejos humanos, além de representar a natureza.
Por ser de fato um conhecimento essencialmente abstrato, com implicações e aplicações em diversos saberes, é mister que a humanidade continue apre(e)ndendo com ela, exatamente por ser fascinante, intrigante, admirável e assombrosa – como de fato são as ideias, reflexões e concepções, sejam estas à esquerda ou à direita.
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Professor da Escola Politécnica, Departamento de Engenharia Química da UFBA e membro associado do Instituto Politécnico da Bahia