Opinião

Regressa o medo à liberdade?

Os opositores a Trump esqueceram as realidades sociais e optaram por políticas identitárias

A recente eleição de Donald Trump dá lugar a diferentes buscas de explicação, a mais corrente até aqui consiste em afirmar que o campo oposto à extrema direita – enfatizando o partido democrata norte americano onde coexiste desde a direita liberal à esquerda – esqueceu as realidades sociais e optou por políticas identitárias. Na verdade, identitário é o comportamento que atribui importância exagerada às afinidades dentro de seu “grupo”, excluindo afinidades ainda maiores com outros “grupos”. É formação de gueto e caminho das discriminações, habitualmente com discurso de mercantilismo político.

Mas não é comportamento identitário lutar contra o racismo e o patriarcalismo. Faz parte da luta pelos direitos humanos, origem histórica da democracia radical, constituindo princípios não negociáveis nem abandonáveis. A isto se acrescentam as políticas públicas para enfrentar constantes desigualdades sociais.

As condições de vida das camadas de baixa renda geram frustração e sentimento de marginalidade, mesmo havendo melhorias comparando com a geração anterior, na medida em que essas camadas não se comparam com décadas atrás. As grandes comparações incidem na atualidade com os níveis de vida do segmento das altas rendas que, como referiu Bernie Sanders, nunca viveu tão bem.

A criação massiva de novos empregos com baixos salários não promove mais produtividade, nem alargamento do mercado interno. Reduzir a taxa de inflação mantendo os mais recentes preços, significa queda anual do nível de vida se os salários não subirem significativamente acima daquela taxa, quer dizer, mecanismos de aceleração e diversificação do crescimento são indispensáveis, exigindo competência técnica e sensibilidade social. Pequenas taxas de alta no PIB têm pouco impacto no cotidiano e promover maior acesso a bens de sobrevivência só vale na vida das pessoas se for transitória e evoluir para bem-estar efetivo. De contrário gera comparações, olhando para cima e para o lado.

Acima estão os setores mais confortáveis das classes médias (sublinho o plural) e alta; ao lado estão, em vários países, os imigrantes usados pela extrema direita como bode expiatório para mobilizar nas baixas rendas. Em todos esses países a mão de obra imigrante é essencial ao funcionamento econômico, mas são aparentemente “diferentes”.

A imigração ilegal é inaceitável em qualquer país, até porque a vaga atual vem acompanhada de intensa exploração dos migrantes: antes de chegarem a seus destinos, por uma camada voraz de coiotes, passadores, transportadores, falsificadores; após chegarem, por outra camada interessada em mão de obra sub-remunerada.

Portanto, é legitimo e necessário que os governos impeçam essas práticas. O pior neste ponto, porém, está na imagem e estigma com que marcam o imigrante, o discurso de ódio contra ele (seja legal ou ilegal) pa evacuação de frustrações sociais. É um ódio que rapidamente é usado contra inimigos políticos internos, considerados cumplices, para mobilizar apoios.

A CNN efetuou uma pesquisa no dia das eleições norte-americanas e constatou que 11% dos eleitores tinham a questão imigratória como preocupação maior, ou seja, abaixo dos percentuais sobre democracia e economia em geral. No entanto, os 11% fazem grande diferença, eles são muito mais que a diferença no resultado. A difusão do ódio e do medo ao “outro” é fator poderoso por si só, ultrapassando para muita gente as linhas de classe, raça ou sexo, como se viu nessas mesmas eleições.

Em vários países de todos os continentes, o ódio ou medo do “outro” é reforçado pelo exacerbar de longínquas tradições, fé religiosa e apelos à História embelezando situações e heróis, hoje apresentados como inspiradores de candidatos a líderes, salvadores que merecem poder total. Quem não concorda é “traidor”. Discurso no qual coincidem totalitarismos ou autoritarismos de todas as tendências, capazes de construir importantes bases sociais de apoio ou até maiorias durante algum tempo.

Enfim, há os ultras, defensores dos privilégios e opressão como algo “natural”.

Nada disto é novidade. No começo da década de 1940, em plena segunda guerra mundial, Erich Fromm publicou um livro traduzido em português com o título de “O medo à Liberdade”, abordando como se chega a esses regimes. Décadas depois, o economista John Kenneth Galbraith acrescentou que bolso vazio é uma tremenda limitação à liberdade.   

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Jonuel Gonçalves é pesquisador associado no NEA/INEST da UFF (Niterói),ex-professor visitante da Uneb (Salvador) e está à frente do Blog do Jonuel