Opinião

A crise diplomática entre Brasil e Israel

(ou sobre o infindável jogo entre opressores e oprimidos)

Frente a dilemas humanitários, é imprescindível pensar para além do que nos é dado, para além das caixas de ferramentas que organizam a vida em sociedade – sejam elas profissionais, político-partidárias, ideológicas ou diplomáticas. Ou corre-se o risco de perder de vista o horizonte, o referencial ético que importa.

É o que busco, nessa curta reflexão sobre a proclamada crise diplomática entre Brasil e Israel, instalada a partir da fala do presidente Lula, que, ao traçar um paralelo entre dois crimes de larga escala – um contra os palestinos e outro contra os judeus –, provocou a ira do governo de Benjamin Netanyahu.

O paralelo foi claro. Não significa dizer, porém, que os dois eventos históricos tenham sido igualados. O externado pelo presidente brasileiro encontrou ressonância em muitos, mundo afora, porque baseou-se em uma similaridade clara de propósitos: o extermínio de povos, orquestrado por tiranos, ainda que em diferentes épocas e contextos.

O genocídio perpetrado contra os judeus é uma das páginas mais cruéis da história da humanidade, e sua memória deve ser (e vem sendo) preservada, para que a perversidade não se repita – não só contra eles, mas contra nenhum grupamento humano, ou sob qualquer pretexto, mesmo o da autodefesa.

Em resposta a uma ação evidentemente criminosa de uma facção sunita, toda uma população está sendo encurralada, impedida de deixar o território conflagrado, bombardeada indiscriminadamente, privada de água e comida, de ajuda humanitária... Saldo estimado: dois milhões de palestinos mortos – 12 mil dos quais crianças.

Que “direito de defesa” é esse? Que nome isso pode ter senão genocídio? Como chamar de guerra a atitude deliberada, continuada, de assassinato massivo de cidadãos, incluindo feridos em hospitais? Cadê a observância mínima às convenções que buscam orquestrar os conflitos mundiais? Onde está a linha divisória entre civis e combatentes?

Pode-se arguir que as técnicas do Hamas são de guerrilha, não de guerra. Mas imagens, informações e mesmo declarações oficiais demonstram que a inteligência de Israel foi/é capaz de identificar os esconderijos dos agentes da organização islâmica, o que permitiria incursões precisas a esses focos.

Então, por que que a matança generalizada de civis? Qual a justificativa para orientar a população palestina a se concentrar no sul da Faixa de Gaza, onde estaria a salvo do fogo do exército israelense, e depois cercá-la, atacar seus acampamentos, matá-la de fome, sede, frio, doenças, bombas, granadas, balas de fuzis?

As ações do governo israelense claramente não corroboram com o argumento de ofensiva dirigida unicamente à organização islâmica. Tampouco as palavras. E as da ministra da Igualdade de Israel, May Golan, são inequívocas: “Estou orgulhosa das ruínas de Gaza, os bebês palestinos lembrarão de nós”.

Lula com certeza reabriu uma dolorosa ferida, mas a dor não pode obscurecer a razão. E os judeus não devem se deixar levar pela manipulação grosseira das palavras do presidente brasileiro, que não os comparou aos nazistas. Comparou a ação sanguinária de líderes da extrema-direita internacional, pedindo o fim das atrocidades na Palestina.

E o fez com extrema sabedoria – que não é, frise-se, sinônimo de eruditismo. Eruditismo pode ser arrogante, rude, virulento, como o tratamento dispensado por Netanyahu ao Chefe do Estado brasileiro, expondo o pano de fundo desse conflito: o jogo entre opressores e oprimidos.

Tanto no campo de concentração de Gaza quanto no campo da diplomacia entre o Brasil e Israel.

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Suzana Varjão é jornalista e escritora, autora, entre outros, dos livros “Micropoderes, macroviolências” e “Violações de direitos na mídia brasileira” (vols. I, II e III).