Ana Cristina Cesar | Foto: Divulgação
A poeta Ana Cristina Cesar viveu a radicalidade da junção poesia-vida, publicou A teus pés, em 1982. O livro apresenta uma escrita que traz a inquietude de uma geração e mesmo que nunca tivesse a intenção, antecipa evoluções no campo jurídico de defesa à vida, dos direitos das mulheres, das crianças e adolescentes e proporciona de forma reflexiva e disruptiva questões de sua geração que resultaram em mudanças significativas, da quebra da ideia de casamento como único caminho feminino, da repulsa pela aceitação da violência em todas as suas formas seja para agradar a família, seja para manter vantagens financeiras, numa sociedade burguesa que valoriza o superfícial dos olhos das moças sérias. Ana Cristina Cesar, em sua escrita fragmentada, coloquial, busca romper com esse caminho da formalidade na vida, nas relações e na literatura.
“Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais.
O amor, a felicidade e o ser existencial da mulher ressurgem em várias partes do texto, assim como ao descrever as partidas: “...__ mas quando eu fui (aquele dia no aeroporto) ainda havia ares de mistério_...”. Ana Cristina Cesar vivenciou o período da ditadura militar, e quando publicou A teus pés, o Brasil estava na era do presidente João Figueiredo, último presidente militar. Em 1985, foi criada a primeira Delegacia de Atendimento Especializado à Mulher (DEAM) com ações de proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e, em 1988, a Constituição Federal finalmente reconhece as mulheres como iguais aos homens e essas conquistas foram frutos de inquietações da geração de Ana Cristina Cesar e das gerações anteriores. A Constituição de 1988 também trouxe expressamente novas configurações familiares, como a união estável, a família monoparental e, assim, o casamento deixa oficialmente de ser o único caminho das mulheres, no campo jurídico, assegurando proteção jurídica às mulheres que buscavam outras formas de viver.
No livro A teus pés, em vários fragmentos, é possível reverberar essa crítica ao casamento como o caminho para o feminino numa visão ainda pautada por um direito de família singular. Em “conversa de senhoras” , Ana ironiza: “Não preciso nem casar/ Tiro dele tudo que preciso...”. Das amenidades burguesas, Ana costurava sua poesia cortante: “ Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande história passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate incompassado entre gaufrettes”
E as conquistas no campo do Direito vão surgindo bem depois das lutas travadas por essa geração, inclusive pelos chamados poetas marginais que Ana Cristina Cesar fazia parte, se é que podemos enquadrá-la numa categoria. Apenas com o Código Civil de 2002, a falta da virgindade deixa de ser motivo para anular o casamento.
A geração de Ana Cristina Cesar foi influenciada pelo tropicalismo, pela fragmentação da linguagem, pelas referências em metalinguagem que fazem falar da vida, da própria escrita, das artes, numa simbiose que, muitas vezes, reflete-se na figura do próprio poeta.
Ela literalmente, no livro A teus pés, tira as luvas: “ Os militantes sensuais passam a bola; depressão legítima ou charme diante das mulheres inquietas que só elas? ”. Ana não era uma militante política, mas a sua subjetividade em verso e prosa, denota um projeto político, o anseio de um papel feminino muito além do que as leis da época protegiam e a sociedade acolhia. Ela foi aluna de Cacaso e Clara Alvim, não era adepta das drogas e do sexo casual, na escrita, era intitulada “marginal”, mas rompia o próprio rótulo de marginal. O corpo do poema é o próprio corpo da mulher e a vida e a arte ressoam em sincronicidade, assim a subjetividade da mulher e seu anseio de romper as armadilhas dos estereótipos impostos pelo momento da escrita ressurgem em diversos fragmentos do livro A teus pés, que descortina a capacidade da mulher de sobreviver a uma época, em que as próprias palavras e as leis eram masculinas, como em “ o homem público nº 1(antologia)”, em que desabafa ; “ ... também escrevi coisas assim, para pessoas que nem sei mais quem são, de uma doçura venenosa de tão funda”.
Ela criticava a escrita feminina da época que era quase sempre associada ao leve, etéreo e belo, enquanto ela escrevia com o sangue de uma poeta. A mulher que necessariamente não precisava ser mãe, mas poderia ser, a mulher que não precisava casar, a mulher livre, a mulher que buscava espaço público para expressar suas opiniões, a mulher sem sexo definido, as diferenças entre sexo e gênero, são essas vozes de subjetividades diversas que a escrita de Ana potencializa e assim antecipa tudo que veio em seguida e continua atual para repensarmos todes, todas e todos, as conquistas femininas que ainda são necessárias, mesmo após decisões do STF e STJ, como a súmula 364 do STJ que considera a impenhorabilidade de bem de família, no caso de imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas, o julgamento da ADI 4277/DF e da ADPF 132/RJ donSTF, que reconhece a união entre pessoas do mesmo sexo e determina interpretação extensiva ao artigo 1723 do Código Civil, a resolução CNJ n175, de 15 de maio de 2013 que autoriza o procedimento de habilitação e a conversão da união de pessoas do mesmo sexo em casamento, a lei Maria da Penha de 2006 e sua aplicabilidade no caso de mulheres transexuais, a lei do Feminicídio de 2015 e outras leis, decisões e normas do ordenamento jurídico que foram resultantes dos movimentos coletivos e individuais das gerações anteriores.
O ordenamento jurídico brasileiro ainda defende a monogamia, sendo vetado, por exemplo direitos previdenciários ao concubinato chamado impuro em que se mantem uma família paralela por anos. Isso foi decidido em sede de repercussão geral, tema 526, pelo STF, em 2022, no caso de pessoa que manteve, durante mais de vinte anos e com aparência familiar, união com outra casada e não tem direito a dividir a pensão por morte com a família oficial. Na doutrina do Direito das Famílias, a afetividade é considerada o molde para se pensar o conceito plural de família. Mas a afetividade nem sempre é protegida.
Ana Cristina Cesar, ao traçar o corpo do texto e a subjetividade das mulheres, parecia prever o que hoje se chama de direito das famílias, observando-se essa diversidade de olhares, assumiu uma escrita profética como expôs no trecho do texto “ mocidade independente” do livro A teus pés: “ pela primeira vez infringi a regra de ouro e voei para cima sem medir as consequências. Por que recusamos ser proféticas?”. Ela não esperou o tempo de presenciar parte das suas profecias. Ela viveu além do seu tempo e sua escrita ainda inquieta e faz refletir sobre a vida.
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Bibliografia:
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 1ªed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
MORICONI. Italo. Ana C. O sangue de uma poeta. Editora e-galáxias, 2016.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 4.ed. São Paulo: Ed. Forense, 2023.