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"Papai, você pode me trazer a boneca que não tem uma perna? Quero brincar com ela no banho, gosto muito dela", diz minha filha do chuveiro do banheiro. Se para Isadora uma boneca não é descartável, uma boneca perneta, o que dizer então sobre o amor aos pais, aos amigos, avôs, tios, cães? As crianças sabem o que é amar. Minha filha ama, e não é um amor líquido, descartável, que se joga no lixo.
Bauman usa o termo “amor líquido” para melhor representar a fragilidade das atuais relações. Segundo ele, amor líquido é um amor até segundo aviso, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-o enquanto ele te trouxer satisfação, benefícios, e o substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. É o amor com um espectro de eliminação imediata.
Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo.
O amor líquido é mais um produto da modernidade líquida, um período caótico e fragmentado em que as pessoas, em geral, se sentem mais confusas e inseguras consigo mesmas, com o espaço que habitam e com o tempo que as cerca. Todo mundo conectado com todo mundo - e todo mundo se sentindo mais solitário do que nunca. Uma tragédia.
A modernidade líquida vem gerando uma crise emocional tamanha que assola as pessoas em individualismo, egocentrismo e narcisismo extremados, levando o homem a sentir-se desprovido, inseguro. É a sociedade líquido-moderna, prisioneira desse sistema de exclusão. É possível expressarmos verdadeiramente afeto por alguém? Amamos uma pessoa pelo que ela é, ou pelo que ela representa para nós, pelo que ganhamos com ela?
A “moralidade líquida” faz da figura do outro um estranho que só adquire importância quando se presta a satisfazer os nossos objetivos egoístas. Note que essa reflexão lembra bem A Metamorfose, de Franz Kafka. Está tudo lá.
Hoje, o amor está fora de moda. Sendo assim, ainda faz sentido sonhar com um relacionamento sincero ou estável?
Há uma preferência em livrar-se da complexidade de relacionamentos pela ótica de que compromissos são, antes de tudo, chateações. Por essas e outras, o amor líquido escapa de nossas mãos como a água evapora no ar. Então: joga fora! Troca!
Na sociedade líquido-moderna, a “solidificação, o amor não depende de um entregar-se ao outro (como deveria ser), mas sim das duas partes tirarem vantagem uma da outra (como realmente é).
A oferta de coisas (e pessoas) é abundante, e assim reduz-se o valor emocional atribuído. Nossas relações estão cada vez mais instáveis. São só negócios. Mas se você ouvir o coração de uma criança, vai se lembrar o que é o amor... O que você foi um dia. Lembra, lembra?