Carlos era o meu padrinho no NA (Narcóticos Anônimos). "Carlos" não é o seu verdadeiro nome. Mudei porque só vou queimar o meu filme. Como sempre faço.
Carlos morreu, recentemente. Na véspera de sua morte, eu estava profundamente angustiado, chorei. AÍ soube o que tinha acontecido. Entendi. Quem disse que a vida da gente é uma eterna despedida, tinha razão.
Há muitos anos, quando estava todo fodido, aqui em São Paulo, numa abstinência violenta, subindo pelas paredes, Carlos ouvia os meus berros de desespero. Ele não tinha celular; tinha um bip. Bastava eu bipá-lo pra ele me ligar de um orelhão. Não demorava cinco minutos e ele me ligava. E ia me buscar em qualquer canto da cidade.
Falava que eu ia conseguir. Me mostrava os braços marcados pelos baques de cocaína, sem algumas veias inclusive, cicatrizes, e me dizia que se ele conseguiu, depois de 17 internações, sendo que nas últimas 2 ele havia sido amarrado, eu conseguiria passar por aquilo também.
Ele estava limpo tinha quatro anos. Eu não concebia como alguém que fez tudo que ele fez podia ficar sem usar drogas por tanto tempo. E ainda por cima se sentir bem. Procurei seguir seus passos. Estava jogado, caído, detonado, e decidi não morrer daquele jeito.
Foram noites e dias infernais. O meu corpo sentia falta daquela química toda. Andava pelos quarteirões de madrugada, sentia falta de ar, não parava no mesmo lugar por mais de um minuto, fumava quatro maços de cigarros por dia. Não tinha saco nem pra esperar o elevador.
Sentia muita culpa e vergonha. Lia livros andando. Mal conseguia terminar de ler uma página. Não tomei nada nesse tempo todo, nem um remedinho. Tava foda demais viver, e nem morrer eu havia conseguido.
E o meu amigo Carlos me acompanhou. Ele entendia do precipicio porque pulou de lá muitas vezes.
No meu aniversário, não sabia o que falar. Calei a boca. Ele me entendeu. Comprou um bolo e seus filhos cantaram parabéns pra mim. "Repreendi algumas lágrimas rebeldes".
Chorei como uma criança no banheiro. Escondido. Estava me sentindo sozinho e agradecido. Eu podia ser um psicão, um ladrão. Mas Carlos sabia das capas. E não se enganava com os disfarces da gente.
Cada conquista minha era a sua felicidade. E minha maior conquista foi ter sobrevivido para conhecer minhas filhas... O meu tesouro, a alegria de minha vida. Eternamente grato, amigo fiel e bondoso.