Cassiano Antico

Como explicar o mundo se são as crianças que nos estão ensinando?

"Tesouros não são apenas ouro e prata, amigo"

Chuva
Foto: pixabay/Creative Commons

 
Vós, que sofreis porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele
-- Victor Hugo

Existem aqueles que já perderam muito. Perderam demais. São pessoas que não podem roubar no jogo. Tudo: menos isso. E isso faz com que a derrota seja uma espécie de vitória. Porque ela é real. Não foi rapinada, forjada; como fazem os covardes.

E muitos perderam, inclusive, as vestes. Aqueles que fizeram alguma diferença no mundo: andaram com pouco nos bolsos, ou quase nada.

E os verdadeiros sábios não possuíam sequer uma biblioteca. "Tesouros não são apenas ouro e prata, amigo".  Jesus, Sócrates, Buda: não escreveram uma única palavra, linha, livro, resenha, prefácio, roteiro, peça teatral, poesia concreta e nem líquida. Olha pra você ver.

Como aborda Friedrich Nietzsche em "Humano, Demasiado Humano": "O homem que vê mal vê sempre menos do que aquilo que há para ver; o homem que ouve mal ouve sempre algo mais do que aquilo que há para ouvir."

Ou então: João Do Vale, Rimbaud (mijou na cabeça dos eruditos e poetas fariseus de sua época e mudou a poesia para sempre). Já escrevi algo sobre isso por aqui. 

São Francisco de Assis, segundo Dante Alighieri, foi luz que iluminou o mundo.

Por isso não consigo pensar em nenhum empresário, empreiteiro, amigo de empreiteiro, acumulador de dinheiro, político, ricão, cartola, espertão, presidente de comitê, nenhuma merda assim - porque são os verdadeiros miseráveis do nosso mundo... O tipo que arranca os lindos dentes de Fantine ("Os Miseráveis", Victor Hugo) por prazer, por ganância, por maldade; era tudo o que restava àquela mulher, e ela abre mão, e vai para o matadouro de cabeça erguida por amor à sua filha Cosette.

Nenhum Emílio Odebrecht entenderia, não entenderia porque não vale um fio de cabelo de uma Fantine.

Fantine: a bondade que desespera... Que perde tudo por amor. Que decide perder porque a vitória significa vender a própria alma. Quantas pessoas você conhece assim? Com tamanha dignidade? Segundo Kerouac, as nossas melhores pessoas são motivo de burla nesta terra de pesadelo. 

Gregor Samsa, visto como um peso para sua família, a qual deveria suportar. A realidade do mundo, mas não a realidade das crianças.

Minha filha tem as mãos quentes e o coração puro e me pergunta "por que" as pessoas falam mal da chuva se a chuva alimenta as plantas? Ela me pergunta "por que" as pessoas abandonam seus cães na rua. Ela quer saber "por que" existem crianças como ela morando na rua, jogadas na chão. E me diz que todas as cores e pessoas são lindas!

Eu me calo e me sinto sufocado, enforcado, e seguro firmemente suas mãos e reparamos nos bichos que voam, que andam... Penso que criamos este mundo, esta sociedade triste e competitiva que restringe todo o valor humano às aparências e a tudo que se venda.

O dinheiro compra tudo. Compra o Congresso Nacional, compra tinta para cabelos brancos, perucas, dentes azuis, e compra até amor verdadeiro - como saiu da boca de um personagem de Nelson Rodrigues.

E volto a pensar em Gregor Samsa, o responsável pelo provimento da família. Contudo, ao metamorfosear-se em inseto, tornou-se impossibilitado de bancar seus familiares, de modo que, na medida em que não os pode prover, perde o seu valor. Não vale mais nada! Zero! Virou lixo!

Valemos na medida do dinheiro e da influência que temos, dos contatos que possuímos, do números de seguidores no Instagram, das fotos ao lado de "famosos" ("famosos" que ainda não se queimaram e nem foram cancelados).

Como explicar uma monstruosidade assim para minhas filhas? Como explicar que a palavra do homem não vale nada, e por isso existe o contrato? Como explicar o motivo de negros serem espancados até a morte?  Como explicar um governo que joga a culpa das queimadas criminosas na Amazônia no cangote do ator Leonardo Di Caprio? Como explicar se são as  crianças que nos ensinam?