A descoberta de um grupo de guaribas-da-caatinga na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Serra das Almas, entre Crateús, no Ceará; e Buriti dos Montes, no Piauí, é uma excelente notícia para uma espécie que mesmo ainda pouco conhecida, já está criticamente ameaçada de extinção.
As informações preliminares são de Robério Freire Filho, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ele destaca que uma das principais ameaças à espécie é territorial: “o declínio populacional está muito ligado à perda de habitat. Eles precisam de uma área florestal, um dossel de 10 a 15 metros de altura com conectividade.
No Ceará, áreas planas florestadas praticamente não existe mais. O que sobrou são áreas muito íngremes onde o ser humano não consegue chegar na mesma intensidade para desmatar e produzir. No Piauí ainda há áreas com caatinga arbórea, cerrado, cerradão, no centro-norte e norte escapando porque a agricultura está mais concentrada no sul. Mas a tendência é que a agricultura se expanda e seja um problema muito grande para as espécies que se desenvolvem nessas áreas”, informa.
Guariba-da-caatinga
A guariba-da-caatinga (Alouatta ululata), também conhecida como capelão, é uma espécie de primata criticamente ameaçada de extinção com base na avaliação nacional realizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e ameaçada de extinção com base na União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
O guariba-da-caatinga pertence a um grupo de primatas que tem como principal característica uma vocalização bem marcante. Esses animais, principalmente os machos, apresentam um osso hioide bem desenvolvido, o que permite que a emissão de vocalizações que podem ser ouvidos até cerca de 2 ou 3 quilômetros de distância. Tais vocalizações duram em média 10 minutos.
Eles se alimentam estritamente de componentes vegetais (folhas, frutos, flores, casca, etc.) e dedicam grande parte do seu tempo ao descanso nas copas das árvores. Os picos de atividade são no início e fim do dia, períodos em que a temperatura é mais amena na Caatinga.
A espécie se distribui do noroeste no Ceará, na Serra da Ibiapaba e áreas de remanescentes florestais próximas; passando pelo norte e centro-norte do Piauí, em áreas de caatinga arbórea, cerrado, cerradão, mata de cocais e manguezal; até o norte do Maranhão (matas de cocais e mangue, principalmente). Sempre em área com vegetação arbórea, são animais de médio porte e precisam de um dossel bem desenvolvido para sobreviver.
Atualmente, a perda de habitat é sua principal ameaça, mas, em algumas regiões, ainda são alvos de caça. No Ceará, a espécie é restrita a áreas de difícil acesso, como a encosta mais íngreme da Serra da Ibiapaba ou alguns enclaves úmidos com declividade acentuada. Certamente, os desmatamentos em áreas mais planas e caça histórica dizimaram grande parte das populações no Estado do Ceará.
No Piauí, ainda existem grandes áreas com vegetação arbórea, mesmo em regiões mais planas, o que permite a existência de várias populações, principalmente no Delta do Rio Parnaíba, mas em algumas fazendas do centro-norte do Estado também. Contudo, o cultivo de cana-de-açúcar nas margens do Rio Parnaíba assim como o cultivo de soja nas áreas de Cerrado e/ou Caatinga são grandes ameaças às poucas populações existentes da espécie.
“No Maranhão, não sabemos muito bem o quanto as populações estão ameaçadas, mas a agricultura se expande. Apesar de menos frequente nos dias de hoje, a caça foi responsável por diversas extinções locais, principalmente no Ceará. Hoje é menos intensa, mas ainda existente e ameaçando a sobrevivência da espécie em toda a sua área de distribuição”, explica Robério.
O Projeto Guariba é composto por Robério Freire Filho, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da UFPE; Bruna Teixeira, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da UFPE; Thabata Cavalcante, bióloga; e Bruna Bezerra, professora do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da UFPE.
É financiado pela Rufford Foundation, conta com o apoio do Muriqui Instituto de Biodiversidade (MIB). Seu trabalho tem foco em três grandes eixos: pesquisa de base sobre a guariba-da-caatinga, Educação Ambiental nas comunidades locais e divulgação científica por meio do Instagram. “O intuito é trabalhar pela conservação da espécie produzindo conhecimento científico, mas de forma conjunta com a comunidade local”, destaca Robério.
O Projeto Guariba surgiu em 2016, durante o mestrado do pesquisador na Universidade de Lisboa: “Sempre trabalhei com pesquisa de primatas de vida livre e, durante o mestrado em Biologia da Conservação, pensei em contribuir diretamente para a conservação de uma espécie ameaçada de extinção. Depois de muito pensar e mensurar (custo, importância, necessidades…), decidi trabalhar com essas espécies de primata ameaçada de extinção. Como não se tinha muita informação sobre a espécie e, ao mesmo tempo, estava ameaçada de extinção, eu e meu orientador da época, Jorge Palmeirim, decidimos produzir algo que poderia ajudar diretamente a conservação da espécie”, conta.
Foi produzido um mapa por meio de modelos e análises matemáticas que possibilita identificar áreas prioritárias para a conservação da espécie para funcionar como um guia para as tomadas de decisão para a conservação da espécie.
“O produto fez parte da minha dissertação de mestrado, intitulada ‘Contribuição para uma estratégia de conservação de Alouatta ululata, nordeste do Brasil‘. Ele também foi publicado no formato de artigo científico ‘Potential distribution of and priority conservation areas for the Endangered Caatinga howler monkey Alouatta ululata in north-eastern Brazil‘”, afirma.
“Nesta publicação, mostramos como as Unidades de Conservação são importantes para a conservação, mas não cumprem o seu papel na prática. Também abordamos a necessidade de se criar novas Unidades de Conservação para a preservação da espécie. A guariba-da-caatinga funciona como uma ‘espécie guarda-chuva’. A conservação desse primata ajuda diretamente na proteção da biodiversidade da Caatinga. Além disso, evidenciamos a ausência de estudo biológicos sobre a espécie e sua importância para a conservação local”, detalha.
Além desse artigo, também foi publicado um material sobre a relação da comunidade local com a espécie e uso do conhecimento popular para identificar novos pontos de ocorrência – “Using local ecological knowledge to access the distribution of the Endangered Caatinga howler monkey (Alouatta ululata)“. “Neste estudo, chamamos a atenção para a presença de caça em algumas regiões e uso da espécie. Também registramos uma nova população da guariba-da-caatinga na localidade de Aiuá, município de Massapé (CE), ponto mais a nordeste da distribuição da espécie”, informa Robério.
"Agora estamos coletando dados ecológicos e comportamentais sobre a espécie, algo que ainda pouco se conhecia, e buscando entender como que as mudanças climáticas podem afetar tais aspectos", diz Robério Freire Filho, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biologia Animal da UFPE
“O meu trabalho com a dissertação do mestrado correspondeu ao primeiro ciclo de financiamento da Rufford Foundation e agora estamos no segundo ciclo. Neste ciclo, sou orientado pela Dra. Bruna Bezerra. Agora estamos coletando dados ecológicos e comportamentais sobre a espécie, algo que ainda pouco se conhecia, e buscando entender como que as mudanças climáticas podem afetar tais aspectos. Além disso, busco compreender como que as mudanças climáticas afetaram as áreas de ocorrência da espécie”, relata.
“Os resultados são bem preliminares, mas já podemos afirmar que o aumento da temperatura e a diminuição da pluviosidade, cenários projetados para esta região do Brasil, afetam diretamente aspectos ecológicos e comportamentais. Temperaturas mais altas vão se iniciar em horas cada vez mais cedo do dia, fazendo com que os animais dediquem mais tempo ao descanso e menos tempo à alimentação, locomoção ou vocalização. Isso pode influenciar diretamente aspectos ecológicos, como taxa de natalidade e/ou sobrevivência, por exemplo”, informa.
A coleta desses dados foi feita na Fazenda Cágados, no município de São Miguel do Tapuio (PI). “Durante 14 meses eu monitorei dois grupos, sete dias por mês, ao longo todo o dia, registrei dados ecológicos e comportamentais dos animais que compõem estes grupos. Estas coletas foram realizadas entre 2018 e início de 2020”, revela.
RPPN Serra das Almas
“No fim de 2018, eu fiquei sabendo da presença de um animal grande na RPPN, parecido com um macaco, mas que ninguém sabia muito bem do se tratava. Este emitia vocalizações altas e duradouras. Cheguei a ir à reserva nesse período, mas não consegui ver. Eu já imaginava que seriam guaribas, mas precisávamos de registros visuais e/ou fotográficos”, conta Robério.
Foi neste momento que pensou em fazer um monitoramento com armadilhas fotográficas no dossel das árvores. Segundo suas informações, este método nunca havia sido utilizado na Caatinga, apesar de já existir alguns monitoramentos assim na Mata Atlântica e na Amazônia.
“Com o financiamento da Rufford, consegui recursos para comprar 10 armadilhas fotográficas. No segundo semestre de 2019, iniciamos o monitoramento. Durante um ano de amostragem, observamos diversos animais: urubu, soim, macaco-prego, entre outros. Mas nada de registro de guaribas. No fim de 2020, durante a checagem das armadilhas, foi registrado um indivíduo jovem de guariba-da-caatinga. Ficamos bem felizes por entender que este método funciona e que há indivíduos jovens na RPPN”, comemora.
Segundo o pesquisador, o registro é muito importante para a conservação da espécie: “a população é bem pequena e os animais se escondem bem, estratégia típica de populações que já foram ou são ameaçadas pelos seres humanos. Com o passar do tempo, os animais começaram a se acostumar com a presença de seres humanos que não lhe ameaçam e a tendência é que a população aumente. Assim, nos próximos anos, certamente, poderemos observar vários grupos de guariba-da-caatinga na RPPN e ouvir suas vocalizações com mais frequência”.
“Em áreas com densidades populacionais grandes, como na Fazenda Cágados, os animais são mais fáceis de serem visualizados e todos os dias no início da manhã e no fim da tarde podemos temos o prazer de ouvir a vocalização das guaribas., momento de contemplação para e/ou sinal de chuva para muitos sertanejos. Os guaribas da RPPN Serra das Almas ainda não cantam com a mesma frequência dos do Piauí, mas, por estarem dentro de uma unidade de conservação bem gerida, farão isso nos próximos anos”, finaliza.