Eliete I. Sousa

Tenho os pés queimados, mas venci as brasas espalhadas pelo caminho

Foto: Emre Kuzu/Pexels/Creative Commons
Fogueira

"Minha vó já dizia: meu fí..., tu vai ver é coisa!"

É bem por aí. Mas há uma diferença entre ver e enxergar, entre ouvir e escutar.

Vemos, com os olhos sensoriais, os olhos da cara, os olhos que a terra há de comer - não os meus -, quero ser cremada. Não me sufoquem, por favor, deixem-me respirar!

Mas, enxergamos mesmo, é quando o que vemos aguça a razão, desperta o entendimento e nos traz a clareza da percepção.

E percebemos diferente do que os olhos mostram.

Ouvimos, com os ouvidos sensoriais, mas só escutamos com os ouvidos do sentir, da observação sensória: quando o que ouvimos bate no fundo da alma, nos corta por dentro e finca no peito.

Quando o que ouvimos, atravessa os ouvidos, fere o cérebro, rasga o peito e bate no coração, então entendemos, e entre uma alegria e outra, assimilamos sofrimento e dor. Ou não!

Um entender, que pode nos levar a crescer ou a definhar, dependendo de quem manda: a razão, ou o coração. Ou, a ficarmos confusos, quando esses dois se conflitam. 

O tipo de energia que nos move, boa, ou ruim, é quem define se usamos o fio-terra,  fundamental para desligarmos o circuito, cortar a corrente, ou se provocamos uma explosão. 

Minha energia boa é tanto mais que a ruim, mas, vez por outra, fica intermitente. E quando essa corrente me faz oscilar, questiono o coração. Todas as vezes em que não lhe dei voz, sofri um pouco mais. 

A voz que nos fala no silêncio interior, no fundo do coração, o tempo todo flechada pela razão, temos que a escutar. Ou nos danamos.

Vi, e ouvi, muitas coisas que me moldaram por todo o tempo, com o tempo passando. Depois que entendi, comecei a sofrer. Transformei em sofrimento e dor, coisas que vi e ouvi. Depois que enxerguei, tracei o caminho que meu coração ditou, e passei a me moldar por este fio condutor. 

Usando o cérebro decifrei os códigos, associei razão e coração e me confundi numa linha tênue. Equilibrei-me na corda-bamba, fiz a travessia, mas cheguei machucada. Viva, porém ferida. 

Virei uma esponja encharcada, vez em quando espremendo pra caber mais  água. 

Meu coração é um rio que transborda, e deságua nos olhos embaçando as vistas.   

Para ajudar meu coração, lhe estendi a mão. E assim fomos rompendo: eu dando a mão pra ele e ele me dando água, apagando os incêndios. Virei meu próprio sallva-vidas.

Por toda a minha juventude naveguei em mares revoltos, e vez por outra, ainda mergulho em águas profundas. Pulo do fogo pra água. O fogo me queima, a água me salva. 

Salvei-me das brasas, mas trago os pés queimados; livrei-me das labaredas, mas carrego as marcas das queimadas; a água que meu coração derrama, me alivia a dor das queimaduras e lava as cicatrizes armazenadas.

A travessia me fortaleceu, mas desembarquei muito machucada. Curei muitas feridas, mas fiquei tatuada. 

Preciso de salva-vidas extra para vencer o percurso sendo quem eu sou: sem maquiagem, despida e sem máscaras. Quero pular de asa-delta, deixar o vento levar as cinzas acumuladas, e já chegar do outro lado com a alma lavada.