Suzana Varjão

Diário de uma louca nº 29 (ou 29ª semana num sanatório chamado Brasil)


Foto: Suzana Varjão

Nota da escritora - Se você não quer se arriscar a contrair certas viroses, não abra esse diário. Ele está repleto de humor, lirismo, ironia, sociologia, humanismo, filosofia, nonsense... Como uma espécie de cavalo de troia, esses microrganismos contagiosos foram cobertos com a capa da ficção para transportar fragmentos da realidade fantástica de certo país. Pra rir ou pra chorar; amar ou odiar... Você decide!

Nota da personagem paciente - Antes que comece a ler meu diário, preciso lhe avisar: tenho uma irmã gêmea, Sandra, que sempre vem me visitar aqui no sanatório, e uma vizinha de quarto, Piti. As duas parecem tanto comigo antes de eu entrar aqui que os médicos dizem que somos a mesma pessoa. Mas não caia nessa psicobaboseira de “eu e meus outros eus” não, tá? Eu sou eu, nicuri é o diabo! Tô me curando. Já essas duas... Vão de mal a pior. Vejam se não tenho razão!

***

Segunda-feira. Sandra e Piti continuaram enchendo minha paciência com a história de sábado passado.

Insistem que eu tô omitindo informação sobre o porquê de eu ter vetado a presença das duas em meu quarto.

Eu não sei o que elas querem... que eu narre o comportamento das formigas que passaram pelo parapeito da janela durante o dia?

Ou querem um relatório com firma reconhecida sobre minhas andanças da cama pro vaso sanitário, do vaso sanitário pra pia, da pia pra cama?

Pra não agir como elas e sair jogando desaforo no ventilador, achei melhor começar o dia muda e terminar calada.

Disseram que vão fazer um consórcio pra conseguir, por outros meios, os dados que eu tô escondendo...

É mole?

***

Terça-feira. Minha vizinha veio mostrar um vídeo ao mesmo tempo engraçado e comovente.

Alguém, que a gente não via, jogava uma bolinha daquelas de brincar com pet nas mãos de um homem... de bronze!

O tocante é que um cachorrinho corria, sentava ao pé da estátua e ficava esperando ela — ou ele, sei lá eu — jogar a bolinha de volta.

Fiquei com pena do bichinho. E raiva de quem tava enganando o pobre!

Aí, Piti disse que tinha me mostrado a gravação porque sabia que eu ia tomar as dores do cão-cobaia e entender o jogo do chemito chefito com certos internos do sanatório.

— Só assim pra tirar determinados cérebros da inércia.

E me deu um cascudo...

Aí foi minha vez de tirar a inércia de uma vassoura na cabeça dela!

***

Quarta-feira. Sandra tava tão amarga, hoje! Chegou ironizando um ex-colaborador do cheminto chefito que anda reclamando de falta de ética na administração do sanatório.

— É tanta dissimulação... chega a ser um acite!

Vi que tinha errado a pronúncia de acinte, mas quando a pessoa tá virada no mói coentro, não escuta...

— É acite mesmo. Mecanismo cínico de dominação.

E desembestou a falar sobre a capacidade que os dominadores têm de se apropriarem dos campos de luta dos dominados; de assaltarem os conceitos que orientam o funcionamento desses campos, esvazia-los de seus significados e operá-los, cínica e impunemente, de maneira inversa...

Eu já não tava mais ouvindo, quando ela perguntou se eu tinha entendido.

Claro que eu acho que respondi que achava que sim, né?

Mas parece que não convenci, porque me mandou catar coquinho no deserto do Saara e saiu socando vento!

Quando fui passar as trancas na porta e descontaminar a maçaneta, vi que ela tinha deixado cair alguma coisa.

Era um papel com as letras c  i  t  e desenhadas e uma seta apontando para a esquerda...

Parecia um jogo de palavras (ela adora criar esse tipo de joguinho).

Só que Sandra não é de errar grafia, e invertendo o sentido da leitura, a palavra, pra estar correta, deveria ter acento agudo no “e”.

Rasguei e joguei fora.

Saquei que era só o esboço de uma ideia malsucedida...

***

Quinta-feira. Tem enfermidade rondando por aqui de novo. Dessa vez, a vítima sou eu.

Tô com refluxo, azia, queimação na garganta, enjoo...

Fui pedir ajuda a minha vizinha, mas em vez de me medicar, ela resolveu me diagnosticar.

Disse que eu tava com acidez no estômago por causa do coronavírus, e que ela tava com o mesmo problema, só que com sintomas diferentes.

E danou a falar palavrão.

A justificativa:

— Seu estresse vai pro estômago; o meu, vai pra a língua!

Deduzi que se a causa era uma só, ela devia diminuir a acidez na boca.

Me botou pra fora do quarto.

Vá entender...

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Sexta-feira. Vocês são testemunhas de como tenho evitado falar sobre determinados assuntos aqui no sanatório, pra ver se não me meto em encrenca.

Mas fiquei indignada com a proibição de os jornais noticiarem as falcatruas dos filhos do chefito.

Fui toda-toda comentar o absurdo com minha irmã, que dorme, acorda, almoça e janta agarrada com política.

Me arrependi.

Disse que eu não tinha moral pra protestar contra censura, porque vivia me autocensurando no diário!

Tudo por causa de minhas artimanhas revisões de texto.

Eu, hein?

Depois sou eu que deliro...

***

Sábado. Sandra e Piti chegaram esbaforidas, avisando que a guerra de sementes que tava rolando no sanatório ia se estender até meu quarto!

Mandei fecharem a porta, porque não ia receber pacote suspeito nenhum, que eu não sou besta.

Gritaram que era tarde demais e começaram a me bombardear com arroz!

Como usaram arma biológica, me senti no direito de usar também e peguei meu spray de pimenta.

Não é que vazaram do front?!

***

Domingo. Logo cedo dei de cara com as duas inconfidentes que vocês conhecem fuxicando e com o ‘modo preocupadas’ ativado.

A luzinha do meu acendeu também, claro, e fiquei me perguntando, ou murmurando, ou pensando, sei lá eu, qual seria a hecatombe da vez.

Acho que perguntei, porque elas disseram que estavam especulando como seria o cotidiano após a pandemia, e tinham ficado apreensivas.

Ponderei que não havia motivo pra aflição, que a perspectiva era de fortalecimento do humanismo, e...

— A gente tá preocupada com o fim da convivência de baixo contato com gente chata!

Achei melhor não alimentar conversa, e apliquei a lei do silêncio do sanatório: disse que tava com pedra na bexiga cheia e me tranquei no banheiro.

Vivendo e aprendendo...

Né?

(pisc).

(porque hoje é domingo...)